sexta-feira, julho 28, 2006

Uma história em três actos - Acto I


Dedicada à Marta e à Matilde

O Vasco telefonou-me. Achei estranho. Nunca o tinha feito e o seu tom de voz denotava apreensão. Que estava farto, saturado e já não tinha idade para aquilo. Que o desculpasse mas precisava desabafar.
O Vasco é o namorado da minha amiga Rita. Mais velho que ela uma boa dúzia de anos, divorciou-se da Ana por pressão da Rita, que já não suportava o papel secundário de amante nem lhe eram suficientes as viagens camufladas a Paris. Orgulhosa e muito senhora de si Rita reclamou para si a exclusividade de Vasco e o seu apoio incondicional.
A Rita tem 41 anos alucinantes. Teve uma juventude atribulada. Entre desintoxicações e recaídas, esgotou o tempo de estudar e esgotaria o tempo de viver, não fosse o altruísmo do pai e uma maternidade redentora aos 32 anos. Dessa maternidade nasceu a Marta e, até hoje, nunca mais se deixou tentar pela heroína. Nove anos de abstinência. Finalmente limpa (não é bem assim, como ela diz, nunca se está verdadeiramente limpa, é um dia de cada vez…um dia a mais para a vida).
Rita, contra todas as probabilidades, não detém cicatrizes físicas daquele período. Fresca, jovem e apetitosa, mantém a energia de uma adolescente, a elegância de uma gazela e uma beleza intacta ao passar dos anos e da droga.
Teve mais uma filha, a Matilde, produto de uma relação efémera com um companheiro de circunstância, no seio de um daqueles projectos sociais de apoio a tóxico-dependentes, onde trabalhava psicologicamente a recuperação da habituação e lutava para ultrapassar a precariedade da sua existência.
Deste período, ficaram duas filhas de pais ausentes, perdidos nas vicissitudes da vida e do consumo, e uma mãe esforçada, lutando agora, não pela sua, mas pela vida da filha mais velha, à qual foi diagnosticado um tumor maligno no cérebro.
Mas Rita já estava habituada à fragilidade da vida. Não esmoreceu. Esconjurou culpas e remorsos com os quais se auto-flagelava, arregaçou as mangas e, num processo moroso e angustiante, ela e a sua menina, superaram a provação. Estabilizaram a doença.

(continua)

B~~

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