sábado, junho 30, 2007

Provocação 4

- Querida, vamos ter que começar a economizar.
- Tudo bem... Mas como?
- Aprende a cozinhar e manda a empregada embora.
- Está bem... então aprende a fazer amor e podes dispensar o motorista.

segunda-feira, junho 25, 2007

Crónicas da Galinha Riça - Memorial dos passeios


Vieram de longe estes artífices da pedra. A obra era megalómana e o aparato da chegada dos operários trouxe ao adro da igreja muitos curiosos animados pela novidade e pela extravagância da ocorrência. Não era comum nesta vila beirã assistir-se à execução de obra de vulto, facto que desde logo levantou algumas suspeitas, mas, iniciados os trabalhos, logo a suspeição se desvaneceu para dar lugar ao assombro. O ar boquiaberto da assistência não dava lugar a dúvidas, o início da obra não era uma miragem. A maquinaria avançou convicta, seguida de pedreiros, assentadores, calceteiros, tudo numa roda viva, confirmando a sumptuosidade do empreendimento. Qual Torre de Babel, a obra estender-se-ia para além da visão mais apurada, desaparecendo do alcance humano na encruzilhada das Alminhas, à Fonte da Cruz, relação assaz curiosa, como mais à frente ireis perceber.
Na senda de outros empreendimentos, também este foi planeado em jeito de promessa por graça concedida. Salvaguardadas as distâncias e as circunstâncias históricas é inevitável a comparação entre a execução dos passeios da Avenida da Igreja e a construção do Convento de Mafra, não só pela complexidade do projecto mas também pela motivação dos seus mentores.
O rei D. João V, amante desenfreado das mais belas freiras do reino, ficou desconcertado na sua virilidade quando verificou a fealdade da sua consorte D. Maria Ana de Áustria. Ora, não havendo falta de freiras à altura, D. João V negligenciou a câmara nupcial da rainha privando-a da sua mui preciosa semente real. Passaram-se assim dois anos sem que D. Maria Ana sentisse o vigor da fertilidade, agravo ainda maior se atendermos às consequências políticas que a falta de herdeiros implicava. Perante o absoluto repúdio que a rainha lhe incutia, D. João V, rodeado das suas acólitas predilectas, fez votos a Sto. António, prometendo construir um grande convento caso visse garantida a improvável descendência.
Pois de milagres vivem as desonestas intenções. O santo casamenteiro lá se aprestou a virar o gume ao arado e a encaminhar o nosso rei a rego certo. Deste encaminhamento nasceram cinco filhos e com o ouro abundante que lhe chegava do Brasil deu cumprimento à promessa. Mandou construir o convento de Mafra.
Também aqui por Canas reinam desconfortos conjugais. Todos sabemos que a “madrasta”, cognome que um conceituado cronista cá da praça atribuiu à rainha que nos calhou em sorte, não morre de amores por nós, mas, mesmo de cabeça enfeitada por infidelidades permanentes, insiste neste casamento forçado que se arrasta quezilento há mais de um século. No nosso caso não está em causa a questão da descendência, pois a “madrasta” é estéril e, por mais que lhe enchamos o baú de diamantes, dali não sai nada; o que ambicionamos mesmo é o divórcio pleno, por isso optámos pela via litigiosa, ainda que os frutos colhidos nos tenham, por enquanto, sido amargos.
Mas, dizia eu, é notória a similitude de processos entre a recusa de D. João V e a cupidez da “madrasta”. Aquele, temendo a desagregação do reino na ausência de herdeiro, invocou o santo por via de promessa conventual para que lhe assegurasse a linhagem, esta, confrontada com a possibilidade de ver o seu território fracturado, rogou a São Salvador que fizesse jus ao nome e lhe salvasse a unidade territorial concedida pelo inusitado matrimónio. Em reconhecimento prometia construir belos e extensos passeios ladrilhados a granito na avenida de Sua santa morada. Para feito difícil, promessa grandiosa, como mandam as regras canónicas.
Foi atendida a “madrasta” que assim evitou a desagregação do território e consolidou o insensato casamento. Agora, mãos à obra que é preciso pagar a promessa, não vá o Diabo tecê-las.
Mas esta terra é difícil. Nem os homens cuidam do cumprimento de promessas nem os santos se entendem quanto à administração dos milagres. Iniciados os trabalhos não foi preciso muito tempo para verificar o malogro. Especula-se que foi tanto o empenho dos operários a martelar a pedra e a esburacar os passeios que, as alminhas residentes na encruzilhada da Fonte da Cruz, logo ali, a cem metros dos trabalhos, acordaram do sono secular a que a distracção divina as tinha condenado e urravam agora lancinantes perante os renovados suplícios do purgatório. Tementes a estes fenómenos sobrenaturais, os trabalhadores, crentes e não crentes, ficaram aterrorizados e fugiram desordenadamente, abandonando maquinaria, ferramenta e material. Ainda hoje não se sabe onde eles param.
Estarrecidos ficaram também os canenses, não por efeito do fenómeno, que ao purgatório já estão habituados, mesmo que o dos vivos, pois que conste, nada prova que seja menos doloroso que o dos mortos. O que os pasmou foi a “madrasta”, pois ao que parece, inspirada nos dons etéreos de Blimunda, anda prestimosa a recolher as vontades dos moribundos agonizantes das Alminhas. Se essas vontades, preservadas em âmbar, tinham o poder de fazer subir a complexa passarola do Gusmão também haveriam de erguer os igualmente difíceis passeios da avenida.

Bons repenicos

sexta-feira, junho 22, 2007

Diálogos encrespados. Jantar comemorativo do 1º aniversário do Mulherio.

Riça ...porque vocês não têm noção do infinito? A relação do “criador” vs “o criado”...
M.- Parece-me demasiado infinitesimal...
Achadiça - Pois, tipo abordagem romântica entre uma roda e um parafuso.
Riça - Não te despistes por causa do parafuso, o universo é uma engrenagem completa...
Cristalinda - Ou entre um parafuso e uma roda! Já agora que simbologia atribuis à roda? E ao parafuso? Eu cá tenho uma tendência vulgar para sexualizar tudo isto. Cá para mim isto é tudo conversa de sexo!! Roda, parafuso… está bem de ver.
M.- Lá tínhamos que ir parar ao sexo! O difícil e a queda residem na ruína do abismo, fundo e vazio. A conversa acerca de Deus é grande e diz-se que se há universo não pode ser infinito. O infinito é um oito deitadinho a dormir uma insónia grande que não há doutor que remédio dê…
Achadiça, Cristalinda - Porra!! É lá!!
Cristalinda - Eu insisto no sexo e para esse há doutores e remédios e… doenças. Precisamos urgentemente de uma terceira via sexual, uma forma de…
M.- Não há mais via nenhuma, o sexo é limitado, uma porta transparente aberta de par em par mas sem entrada nem saída. O clímax está no penetrar? No sair ou no entrar? No orgasmo transparente ou no disfarçado? É só ruído, o sexo é só ruído.
Riça - Ó M. não bebes mais, estás a ficar tó-tó de todo.
Achadiça - Depois disto sexo com cavalos é pêra-doce.

terça-feira, junho 19, 2007

Diálogos Crispados. Na cama.


- Onde é que isto nos vai levar?
- Agora é que perguntas, está feito, está feito, amanhã se verá…
- Foi bom não foi?
- Hum hum.
(silêncio)
- Achas que podiamos continuar a ver-nos?
- Não me digas que queres namorar, assim de repente, só porque dormiste comigo! Vais ver que amanhã isso te passa, portanto não me faças perguntas idiotas.
- Não é namorar, é sairmos mais vezes, conhecermo-nos melhor…
- É pá ouve lá, já me conheces as entranhas, a partir daqui é só para nos martirizarmos. Ficamos com esta recordação mais ou menos perfeita e, se se der o caso, reincidimos um dia destes, sem compromisso, que a vida já me foi dura para insistir na companhia.
- A vida já me foi dura para insistir na companhia! Já ouvi isso em algum lado.
- Pois já, adoptei a frase feita como lema. É pouco original mas traduz muito bem o meu cepticismo.
- Olha, desculpa lá a minha humanidade, desculpa o facto de não resumir isto a sexo, desculpa lá ainda acreditar, desculpa lá gostar de ti…
- Não tentes manipular-me com lérias, não vieste por gostar de mim, que sabes tu disso? Vieste porque te agradei visualmente, vieste porque eu quis, querias sexo, eu também… e agora já queres andar de mão dada e amanhã, quem sabe, queres-me a marcar consultas para a próstata.
(risos)
- Pelo menos podias dar-nos o benefício da dúvida. Não me podes impedir de gostar e tu sempre poderias reaprender…
- Ó meu romanticozinho, então andei uma data de anos a desaprender de gostar para agora vires armado em catedrático reensinar-me a matéria dada!
(pausa)
- A tua ironia é cruel, mesmo assim gostei da entoação…
- És mesmo um lérias. Vou dormir que amanhã é dia de trabalho. Dorme bem.
(silêncio)
- Gostava tanto que jantasses comigo amanhã?
(silêncio)
- Telefona-me. Amanhã se verá.

quarta-feira, junho 13, 2007

Meu triste Sto. António

Dia de Santo António, santo pela palavra e pelo exemplo, também por saber falar com peixes. É um santo casamenteiro. E que o diga eu que à conta dele me casei por uma data de anos.
Como santo popular, dá-nos o pretexto para continuarmos a ser populares e então lá vamos nós besuntar-nos de sardinhas, mesmo que o preço não seja popular, e de vinho, claro, à moda do português, onde vai um copo vão logo dois ou três. E com isto entramos nas rimas, nas flores de papel, na marcha costumeira deste povo que cheira a sardinha e a vinho.
Ó meu santo Antoninho, como dizia o José Mário Branco, porque te deram essa sina de casamenteiro. Logo a ti que só me tens proporcionado desgostos.
Contigo amei, contigo perdi. Contigo continuo a perder. Hoje, por exemplo, perdi mais uma das poucas esperanças que tinha. E tu deixaste-me só. Obrigada santo António de Lisboa, hoje foi um dia memorável, mais um daqueles em que nos apercebemos que estamos sós, completamente sós. Não achas santo António que é hora de desmascarar tudo isto? Que sabes tu do amor, sem ser do amor a Deus? Que salvação encontraste tu, ou te atribuíram, para que permaneças santo ao longo dos séculos e mesmo assim possas ser pretexto para as mais mundanas inutilidades. É assim tão em vão a vida dos santos? Apenas mais uma forma de gerar negócio, nem que seja à custa da sardinha com três dias a um preço exorbitante para encobrir o cheiro.
Santo António deixaste de dar-me o que quer que fosse. Mas ensinaste-me que a vida não é tão simples como a dos peixes.

Boas minhocas

terça-feira, junho 12, 2007

1:51

Venho da noite traiçoeira. Desta vez escrevo em meu nome. Jantar fausto, delírios romanceados, copos quase delinquentes. Atravessei a cidade buscando um pouco de música letrada como se um bonito texto apagasse a nódoa das palavras. Artistas simbólicos! Estou farta. Alguns amaram-me, e mal. Já tive homens de muitas cores, e tu tiveste a brecha de entrar sem dares conta... as relações humanas não são relações intelectuais... nunca foi esse o suporte das famílias... e símbolos toda a gente manipula... também há aqueles que fazem encenações....sempre no domínio do simbólico - os homens da minha insatisfação. Estou farta de seráficos. Merda, hoje não devia ser eu.

segunda-feira, junho 11, 2007

Alfa Pendular. Catenária.

Desta vez tens um programa especial.
Temo os teus programas. Ao princípio ainda ficava entusiasmada com a ideia. Pensava ingenuamente que tinhas feito aquele frango de caril picante e mo desses a provar no conforto da tua sala, convenientemente preparada para uma longa sessão a dois. Isto, quando habitávamos sozinhos a tua sala.
Gosto da tua sala. Não me canso de olhar as lombadas volumosas dos livros abandonados à desordem do teu método de trabalho. Mas do que eu gosto mais é da biblioteca. Vagueio por entre as estantes em carvalho escuro, repletas de preciosidades literárias, herdadas da tua mãe e acumuladas por anos e anos de religiosa devoção à leitura. Por vezes gracejavas da tua mãe, dizias que tinha gasto a fortuna do senhor coronel em livros. O senhor coronel que sustentava a amante insaciável com literatura. Sempre mais e mais livros, a medida de um amor proibido. Gosto de imaginar as histórias que esta sala enorme encerra. Em frente à janela que dá para o terraço ainda conservas a poltrona onde a tua mãe desfolhava as incontáveis páginas que o coronel providenciava; na mesa de apoio um livro entreaberto resiste à preguiça da leitura; ao fundo, abandonado à tua letargia, o piano geme desafinado, despertando da sua longa hibernação quando lhe acaricio as teclas; nas paredes, os teus antepassados reprovam o atrevimento da intrusa. Saio para o terraço.
Chamas-me, longínquo. A casa é enorme, daquelas casas aristocratas onde quatro gerações podiam coabitar harmoniosamente. Já foi majestosa, agora deteriora-se, confirmando a decadência das grandes famílias. Ouço vozes femininas. São as universitárias a quem alugas quartos e sei lá mais o quê… tinha que ser, disseste-me, a casa precisa de obras. Não denotam qualquer admiração por me verem ao fundo do corredor, sinal de que é comum a presença de estranhos por aqui. Nada que eu não soubesse.
Estou no terraço, gritei. Contemplava a vegetação que sufoca o antigo lago do jardim interior. Uma corda arqueava sob o peso da roupa das universitárias. Numa das extremidades ombreavam lado a lado as cuecas dele com as das meninas… mas por que raio haviam de estar presas na mesma mola?
Libertei-me destes melindres, respirei fundo e voltei à sala. Voltaste do banho que eu recusei. Estava com o período e não me apetecia partilhar amores de banheira nestas condições. Disse-to e tu sorriste compreensivo. Fosse noutros tempos e insistirias na barrela. Tomaríamos um banho dionisíaco e cantarias hinos às bacantes chafurdando alegremente na água tingida de mim. Agora! Agora tens um programa especial…
Vamos ver “A Gaivota” do Tchekov, disseste de rompante, tentando surpreender-me.
És sempre tão previsível quando me queres agradar. Há tempos disse-te que o meu actor preferido era o Luís Miguel Cintra. Não te esqueceste…

Regresso a Canas. O comboio desliza veloz. Não consigo concentrar-me no livro que me emprestaste, aliás que me aconselhaste. Olho a paisagem em fuga e reparo que a única imagem fixa que retenho é a da catenária que acompanha toda a extensão da linha, um imenso estendal, ridículo, repleto de cuequinhas de mão dada, unidas pela mola do meu descontentamento.

Boas minhocas

terça-feira, junho 05, 2007

Festa da Póvoa. Um conto imperfeito.

Ele sabia que ela estava lá. Talvez rodeada de amigos, inacessível, mas estava lá e isso bastava-lhe.
Demorou-se em preparos, ora disfarçando uma borbulha inconveniente, ora esfoliando um ponto negro mais teimoso. O cabelo já tinha adquirido a forma desejada e o boião do gel repousava agora vazio, junto do frasco de after-shave barato que a tia lhe tinha oferecido pelo 16º aniversário. Lavou dentes e gengivas, quase até à sangria. Puxou a língua e esfregou-a até ao vómito. Por fim, deu estes preliminares por cumpridos, ajeitou os óculos e lançou um último olhar ao espelho. Invadiu-o uma tremenda sensação de insegurança: porque haveria ela de olhar para ele, sempre deslumbrada pelos betinhos do costume, ou então encantada com os trejeitos dos palhaços que lhe faziam a corte, de piada fácil, desinibidos, a lançar-lhe palavrões aos ouvidos… e ele que só lhe queria dizer palavras bonitas, daquelas de amor.
Já tinha pensado as palavras que lhe diria, até se dera ao trabalho de decorar umas quantas frases em inglês, sacadas dos seus temas musicais de eleição. Ah como gostava que ela ouvisse as suas músicas e depois ouvir as dela e depois ouvi-la só a ela… ah como desejava que o mundo acabasse e ficassem só eles, na feliz condenação do “Armagedon”; uma nova ordem universal.
Voltou à realidade. Pelo menos podiam ser amigos, ou fazer parte do grupo dela. Mas como, se ela o ignorava totalmente. Na escola, o ano tinha sido um inferno: as notas miseráveis; a inadaptação às lentes de contacto; os cabrões dos amigos dela, uns crápulas; as namoradas dos outros, sempre ofegantes, a denunciar salivas apetecíveis; as amizades traídas; as amiguinhas dela, levianas, a arrastar a asa a tudo quanto mexia (menos a ele) e ela, insuportavelmente omnipresente, tão perto e tão longe, devastando a pouca auto-estima que lhe ia restando.
Agora a roupa! As mães nunca antecipam estas ânsias. Logo agora que precisava daquela t-shirt gap é que a mãe tinha decidido dar-lhe sumiço. Interpelou-a furioso e não descansou enquanto a pobre não encontrou o desejado adereço boutiqueiro. Adereço boutiqueiro é como quem diz, que esta t-shirt foi adquirida na feira, contrafacção muito jeitosa que a mãe arrematou por dez euros após o inevitável regateio. Mas pronto, a imitação passava despercebida e nada indicava que algum entendido ou entendida lhe questionasse a autenticidade.
Finalmente uma última consulta ao espelho. Tudo em ordem. Saiu amparado pela ténue esperança da noite lhe ser favorável. O plano era simples: aproveitar o terreno neutro da festa para se misturar no grupo dela; depois de integrado, tentar chamar a atenção dela, isto é, intervir com graça e inteligência, se possível ser sedutor, mas, acima de tudo, falar com ela.
Quando magicava o estratagema lembrou-se de um filme que tinha visto, “Fala com ela”, de um realizador espanhol qualquer de que não lembrava o nome. Era uma história engraçada, de esperança e desejo: um enfermeiro apaixona-se pela sua doente em coma e fala com ela como se estivesse consciente, conta-lhe os filmes que vê, os livros que lê, acaba por fazer amor com ela, comatosa...
Fala com ela, fala com ela... estas palavras ocupavam-no por inteiro.
Tudo correu como previsto. A inibição inicial foi facilmente ultrapassada e até foi por mais de uma vez contemplado com gargalhada geral aquando de umas graçolas oportunas. Os amigos dela não o hostilizaram e as três cervejitas que bebeu soltaram-lhe a língua. Fala com ela, fala com ela…
Adoro-te.
A palavra saiu baixinho, envergonhada. A princípio ninguém se apercebeu.
Adoro-te, repetiu, agora de uma forma perceptível e com o olhar fixo nela. Alguns dos presentes tomaram consciência do que se estava a passar e calaram-se incrédulos.
ADORO-TE, insistiu, mas agora de forma incontornável.
Ela ficou petrificada. Todos se calaram. Os olhares da assistência buscavam ora um ora outro, sem perceberem muito bem o que se estava a passar. Um silêncio pesado e confrangedor tomou conta da mesa. A música do recinto distanciou-se, como a banda sonora dos filmes românticos quando o plano requer o protagonismo dos actores.
Adoro-te, insistiu ele. Depois baixou os olhos.
Vergonha. Uma vergonha calada deu lugar ao arroubo inicial e instalou-se incómoda. Valeu alguém comentar qualquer coisa ininteligível para, aos poucos, os convivas recuperarem da surpresa. A música ganhou sonoridade e rapidamente se reinstalou a normalidade na mesa.

Este “benjamim” não logrou alcançar o beijo apoteótico, nem a malta gritou “aí benjamim”; também não falou com ela. Este “benjamim” secou fundo as lágrimas que havia de chorar mais tarde e abandonou o recinto da festa cabisbaixo, impelido pelo malogro, tomando nas mãos vazias a imperfeição do mundo, desacreditando a ordem natural das coisas, odiando a ordem imperfeita da adolescência.

sexta-feira, junho 01, 2007

A birra


Tive um dia dos diabos. Entrei em casa com cara de poucos amigos, pronta a embirrar com tudo, que é uma forma barata de descarregar frustrações e outras nuvens acumuladas. Vinha saturada e completamente indisponível para fazer fosse o que fosse.
O meu Juvenal, que a expensas próprias já ganhou o condão de pressagiar tempestades domésticas, descolou do sofá, respirou fundo e interiorizou resignação, ainda que a impaciência o tenha traído no gesto com que atirou o comando da televisão para cima do sofá.
Lá veio, desajeitado, cuidar de alguma tarefa acessível à sua pouca vontade. E eu, mula, deixei-o cirandar, sem rumo nem objectivo. A hora de jantar deixava escapar apreensão no seu olhar, mas, receoso da minha reacção, moita-carrasco, pois bem sabia que qualquer observação poderia desencadear a ira anunciada.
Não sei se todos os homens têm estratagemas para lidar com estas situações sem recorrerem à argumentação comezinha da velha atribuição de competências. Ao princípio vinha-me com aquela conversa do quintal, que era ele que cortava a relva, que partia a lenha, que regava o jardim, que plantava a horta, ou então a estafada vocação para as ferramentas e para a tecnologia, que era ele que fazia os buracos na parede, que reparava os electrodomésticos, que programava os aparelhos… como se estas tarefas fossem de tão elevada exigência e de tão abnegado esforço que os doze trabalhos do outro, comparados com estes, seriam meros exercícios recreativos e o dispensassem definitivamente de outras funções domésticas, alegadamente menores. Mas isto foi ao princípio, antes de lhe vestir um avental e lhe entregar por uma semana a responsabilidade da lide da casa. Foi remédio santo, nunca mais desconsiderou a trabalheira que dá manter uma casa limpa e os afazeres domésticos cumpridos. Para além disso ganhou uma perspectiva prática e económica na forma e disposição de tudo quanto é móvel ou objecto decorativo: “uma casa sobre rodas” é o grande lema dele. A partir daí, todas as aquisições lá para casa tinham que ter rodas, pois facilitavam a faxina, dizia ele. Mesas, sofás, camas, cadeiras, televisão, computador, tudo sobre rodas. Tive que lhe travar o ímpeto quando me apareceu em casa com uma daquelas plataformas extensíveis com rodas para colocar sob a máquina de lavar roupa. Ó homem então não vez que com a trepidação a máquina vai parar ao fundo da rua. Deu a mão à palmatória, colocou-a na máquina de lavar louça. Satisfeito com o aproveitamento, gracejou bem ao jeito dele, “só pode ter sido um homem a inventar a roda”. Fiquei a moer, mas calei-me, pois o entusiasmo com que se dedicou a simplificar a manutenção da casa era-me favorável. As bugigangas sagradas da mamã foram guardadas no sótão. Molduras, porcelanas e outras inutilidades maternais tiveram por fim o merecido destino. Até os brinquedos dos putos ganharam novos Natais. Isto para não falar da alteração de alguns comportamentos rotineiros, como descalçar os sapatos ao entrar em casa, preservar a roupinha de nódoas, fazer xixi sentado na sanita… aqui ainda reclamou, dizia ele que isso era castrar a virilidade, que os homens quando mijam são como as árvores, mijam de pé. Fiquei em cuidados, será que ele está bom da cabeça? Logo descansei quando lhe entrevi aquele sorriso traquina com que me engatou. Lá cedeu a suposta virilidade à facilidade da limpeza, se bem que agora não me puxa o autoclismo… cabeça de homem é mesmo assim, não vê logo não existe. Levanta-se, puxa as calças para cima e ala, aparece-me na sala muito contente tecendo considerações sobre a economia do novo método: é pá assim não é preciso gastar água a lavar as mãos. Nem a puxar o autoclismo, respondo-lhe eu.
Bem, já me estou a estender nas intimidades. Hoje não me apetece fazer a ponta de um corno e como tal aguardo que o meu Juvenal tome a iniciativa. Já cirandou o que tinha a cirandar e agora instalou-se ao meu lado, no sofá, silencioso. Os putos reclamam com fome. Está muito sério mas não tem coragem de me dizer nada e, provavelmente, a vontade de assumir ele a feitura do jantar é nenhuma. Já me perguntou as horas, insinuando na pergunta o tarde que é. Bem sabe que não há argumentos que lhe valham. Levanta-se comprometido e vai arranjar coragem para a janela. Sim, coragem, porque forreta como ele é, aquilo que tem em mente paralisa-lhe os movimentos. Por fim decide-se:
- Vou ao Escondidinho buscar alguma coisa para comermos.
Calçou os sapatos e galgou as escadas contrariado. Ainda lhe gritei para o animar:
- Vai numa roda e vem noutra.

Boas bicadas