sexta-feira, novembro 30, 2007

Provocação 9

Aquele que, ao longo de todo o dia é activo como uma abelha, forte como um touro, trabalha que nem um cavalo, e que ao fim da tarde se sente cansado que nem um cão... deveria consultar um veterinário.
É bem provável que seja um grande burro.

sábado, novembro 24, 2007

05:30

Julgava vencer a insónia da noite com escritos inconsequentes ao correr da imaginação, mas há dias que os pensamentos correm tão depressa que não existe caneta ou teclado para os fixar, estatelam-se no chão e perdem-se a caminho da urgência do sono, no vai-vem do corredor que me leva ao quarto e me devolve à sala. Esvaem-se como vêm. Nem no hospital há corredores assim, aí as insónias são devidamente assistidas se tivermos a sorte dum enfermeiro enfastiado com as nossas queixas. Não há nada pior que uma insónia entre o quarto e a sala, entre o sofá e a cama, uma insónia de corredor, solitária. O que eu queria mesmo era uma insónia assistida, com companhia, para desbaratar a angústia do copo vazio, essa companhia de merda.
Vale-me não ir trabalhar, como se a folga de trabalho fosse passaporte para a inactividade. Não é, especialmente este fim-de-semana, carregada de filhos, que sendo dele são tão meus como o legítimo… raios que não encontrei outra forma de dizer isto.
Li uma vez um texto que me deixou perplexa, nunca em tão poucas palavras alguém conseguiu descrever tão bem a insónia, pelo menos em português, não me lembro de cor, só sei que está lá tudo o que a insónia tem e o que desesperadamente deixa entrever. Esperem, vou ver se o encontro…
Encontrei, já lá vão dez minutos surripiados à desdita…
Pensei que fosse de um daqueles poetas enciclopédicos, de A a Z, mas não! Chama-se Carlos de Oliveira e sobre o assunto disse:

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: “o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração”.


qed

terça-feira, novembro 13, 2007

Terapia da afirmação


A necessidade de afirmação pode resultar de um sentimento de insegurança, de um complexo de inferioridade ou da falta de auto-estima, mas manifesta-se nas nossas relações pessoais das formas mais caricatas, que podem ir de uma selvática agressividade, como é o caso da violência doméstica, até ao comportamento ridículo do peão na passadeira, que faz que anda mas não anda.
As passadeiras para peões são uns autênticos altares à afirmação pessoal, ali, novos e velhos, eles e elas, impõem-se ao condutor e à máquina, satisfazem as frustrações do quotidiano impondo o seu ritmo, ou a falta dele, e uma razoável centelha de dignidade acende-se lá no íntimo das suas almas. Aqui sou gente, aqui mando eu, ponho e disponho, ao abrigo da lei do tráfego. Não havendo pressa há que aproveitar ao máximo o momento. Então, arrastam-se vagarosamente pela zebra desafiando com o olhar, do alto da momentânea superioridade, o condutor impaciente. Aqueles curtos metros de distância transformam-se num domínio absoluto do tempo e do espaço, numa travessia só equiparada em glória à do Mar Vermelho por Moisés, enfim, um breve momento de elevação existencial. Aqui contam, sentem-se importantes, aqui alguém reage à sua presença, noutro sítio qualquer ninguém é obrigado a cumprimentá-los, ninguém os ouve, ninguém levanta os olhos para ver a cor dos seus, mas aqui, o condutor tem que reduzir, desengatar e engatar a primeira, travar, parar, tudo por sua causa. Aqui são senhores, ou senhoras, aqui sentem-se completos, por isso atrasam infinitamente o passo para saborear a plenitude que o momento proporciona.
Descoberta a eficácia deste tratamento para o ego já não são só as passadeiras o único consultório clínico onde estas práticas são exercidas, já qualquer local serve desde que este também sirva o trânsito, mas aqui tiveram em conta o risco do tratamento personalizado, não fosse algum condutor mais ousado desconsiderar o paciente isolado e acabar-lhe ali com o ego e com o canastro. Assim, estes pacientes da afirmação, agrupam-se aos magotes no meio da estrada, pode ser à saída de um casamento, de uma discoteca, à entrada para o futebol ou em qualquer ponto, tem é que ser numa via de trânsito, e ali petrificam, convictos no êxito desta nova forma de terapia psiquiátrica.
E que ninguém interrompa a horda destes tiranos da afirmação, ninguém se atreva a buzinar, a acelerar o motor ou a criticar o vagar ou a inacção dos transeuntes, estamos perante um direito aparentemente adquirido e as retaliações podem ser-nos imediatamente aplicadas no local, sem apelo mas com agravo, pelo que o melhor é sintonizar o rádio na Antena 2 e rezar para que esteja a passar uma daquelas obras clássicas relaxantes.

quarta-feira, novembro 07, 2007

Morabéza


A minha cachopa sabe a chocolate, não sei de mulher que melhor me trate.
Já lá vão uns anos desde a primeira vez que ouvi esta música do Sérgio Godinho, longe de imaginar que um dia teria uma cachopa assim.
A minha cachopa é morena de cintura. Adoro apanhá-la desprevenida no banho, toma aquela posição característica das mulheres surpreendidas na intimidade, uma mão a tapar os seios e outra a fazer de parra, depois relaxa, sou só eu que venho besuntá-la com creme de amêndoas, dizem que é bom para as estrias, que ela não tem, diga-se de passagem. O que ela tem é um corpo perfeito, pele lustrosa e uns cabelos negros que lhe chegam ao rabo. Não é alta, mas é toda proporcionada, a minha cachopa.
Gosto de a ouvir falar crioulo, fica tão doce quando fala crioulo, até quando disparata. Ouve uma altura que lhe pedia para dizer o que lhe passasse pela tola enquanto fazíamos amor, em crioulo, está claro de ver. Ui! Tive que desistir, lá se iam os “timings” requeridos. Agora limitamo-lo, o crioulo, aos preliminares.
Fico sempre de boca aberta quando a vejo nua em contra-luz, só a minha cachopa conseguem captar a luz daquela maneira. A pele retém toda a luz de um lado e a parte oculta é-me revelada de uma forma ténue, criando a ilusão de um semi-corpo fundido no espaço envolvente, a silhueta é um desafio aos sentidos, um quadro sublime, uma foto de antologia, um poema a preto e branco. E os cabelos!? Ai os cabelos. Às vezes parece um leão, põe-se de gatas na sala e desafia-me para a brincadeira, outras, quando vem do banho, faz de gueixa, cabelo arrematado ao alto e vestida com aquele roupão vermelho tentação. De todas as vezes acabo enrodilhado na sua juba.
Ainda não vos contei mas a minha cachopa tem tanto de envergonhada como de desinibida. Parece estranho mas é verdade. A primeira vez que me chamou para a ajudar a depilar as virilhas fiquei aterrorizado. Nunca ninguém me tinha pedido tal. Engoli em seco e, que remédio, uma coisa destas não se nega à nossa cachopa, lá encetei a, como lhe hei-de chamar, a honrosa, a dolorosa, a curiosa, a deliciosa, bem… a tarefa solicitada.
Homem que é homem sabe sempre aproveitar estas deixas, vai daí, propus-lhe uma depilação completa pois era um fetiche que há muito alimentava. Agora tenho que manter o terreno limpo com regularidade, e acreditem, é sempre uma festa. Trata com cuidado, tem tesouro a caixinha da menina, diz-me ela sorridente, em crioulo. Nem imaginam como isto soa bem em crioulo. Pena não dar para transcrever.
É catraia a minha cachopa de S. Vicente, não traz nos olhos a saudade que a Cesária canta nem cachupas no Pantagruel, traz no hálito o morno sabor do cacau de S. Tomé e no corpo uma vontade insaciável de sexo, diz ela que nas virtudes sai à mãe que é sãotomense, se é que o sexo é uma virtude, arremata hesitante, com dúvidas mal dissipadas pela educação religiosa do colégio de freiras, mas certa da competência maternal, demonstrada largamente nos seus sete irmãos.
A minha cachopa veste bem, não é que tenha muito dinheiro, tem é a sorte de trabalhar numa conceituada loja de alta-costura. Não sei como ela faz, mas a indumentária vai e vem como se fosse dela. Ainda bem, faço um figurão quando entro com a minha cachopa em qualquer lado, eu bem vejo os olhares dos paspalhos, hehehe, mas é delas que eu me rio mais, especialmente aquelas mais esclarecidas nestas coisas da moda, ficam de cara à banda a mirar a minha mulata aparecer todos os dias vestida de forma diferente e caríssima. Depois olham para mim avaliando a improbabilidade de ser eu a pagar a ostentação. Sentamo-nos à mesa e rimo-nos disto tudo, destas saborosas trivialidades, como ela faz questão em dizer.
Às vezes é uma chata, a minha cachopa. Quando está com os azeites fica escorregadia de tão lustrosa, ninguém a torce, deve ser herança genética dos degredados das ilhas. O seu pai era português, morreu em Santiago, no Tarrafal. Dele, nenhumas recordações tem, mas qualquer defeito que se lhe aponte e que não encontre paralelo na mãe, é inevitavelmente culpa do pai. Uma boa desculpa. É engraçada a minha cachopa.
Muito havia a dizer sobre a minha cachopa, as cantorias, os amigos músicos, as amigas obstinadas, o seu jeito para contar anedotas, a sacralização da cueca (palavras dela), o padre que lhe prometeu casamento, enfim, não se consegue falar de uma pessoa em tão poucas linhas, quanto mais da minha cachopa.


Oh, nha bida, dj'u sabi, ma n'qrê torna flau
Ma n'ta amau, y nôs passado cata squecedo
N'qrê canta na bo caminho
N'qrê badja, co tudo carinho
Di bo morabéza


Lisboa, 25 de Julho de 1987