terça-feira, dezembro 19, 2006

Uma história de Natal singela ou o Natal dos Simples


Primeiro deram as mãos, as duas, no jeito simples de quem se contempla. Depois trocaram os beijos e as lágrimas que a saudade impunha.
Ele trazia nos olhos o nevoeiro da Grande Cidade, longínqua, porto de outras águas, de outra língua. Contava entusiasta os pormenores da viagem: as inconveniências da segurança dos aeroportos, a hospedeira de sorriso bonito, a viagem de comboio, o céu tão azul, o sol radioso. Só mesmo em Portugal! E estamos no Inverno!
Ela não o ouvia e o amor calava-lhe as palavras. Olhava-o simplesmente, avaliando os efeitos da ausência, comparando as alterações que o tempo tinha produzido.
Três anos podem transformar uma paisagem, quanto mais um homem, pensava ela enquanto aguardava na estação. A espera permitiu-lhe desembaraçar a meada de recordações: o sorriso fácil, as lágrimas contidas, as outras, em cascata, o cheirinho dos cabelos dele, o dia em que partiu, a despedida, o último beijo. Agora receava que tudo fosse diferente. As suas reservas tinham origem no tom monocórdico e na voz entediada que ele ultimamente usava ao telefone. Ouvia o barulho d’A Grande Cidade lá ao fundo, por trás das poucas palavras dele. Um ruído caótico, que a distraía, que a impedia, talvez pelo medo da verdade, ou da mentira, de perguntar o essencial. Pousava o telefone e arrumava a inquietação. Vai tudo correr bem, pensava, na esperança de que tal pensamento iludisse o receio.
Dezembro. O telefone ecoou na casa vazia. O gravador de mensagens desempenhou o seu papel: “Deixe a sua mensagem…”. Primeiro um silêncio de hesitação, depois, quase envergonhada, a voz dele fez-se ouvir, “é para dizer que vou aí passar o Natal”.
Os telefonemas seguintes vieram confirmar a apreensão dela. Algo de errado se escondia a cada “está tudo bem, não te preocupes”, mas descansava-a a pertinência da viagem. Afinal era Natal e há três anos que ele não vinha cá. Desta vez a sua solidão seria adiada.


A Grande Cidade tinha cumprido o seu papel. Engolira-o inteiro. O contrato prometido que o tinha aliciado a partir, atirou-o para a cave húmida de uma lavandaria de hotel, entre ácidos, detergentes e vapores tóxicos que a sua condição de asmático desaconselhava. Ao fim de um mês vacilou. Agarrou nuns quantos casacos de pele em que a lavandaria era pródiga e vendeu-os ao desbarato para sobreviver. Valeu-lhe o estúdio de um prédio devoluto, cuja demolição um dos inquilinos embargara judicialmente. Ali se alojou clandestinamente com a conivência do dito inquilino, enquanto o processo decorria nos tribunais.
Fosse por comiseração ou por acaso sentimental quis o destino que o inquilino tomasse por ele afeição. Deu-lhe emprego na pequena empresa de montagem de tectos falsos de que era sócio trabalhador. Contrato na mão, requisitos sociais cumpridos, lá aprendeu o ofício de falsear tectos.
Passaram três anos. O dinheiro era escasso e o sonho de um futuro auspicioso desvanecido. Tinha vergonha de admitir o fracasso e, quando telefonava para casa, a pequena firma onde trabalhava ganhava dimensões empresariais, o prédio devoluto onde vivia transformava-se em condomínio privado e, na garagem, estacionava um carro imaginário.
Mas a realidade era feita de bruma e nevoeiro. A Grande Cidade também. O “smog” instalara-se-lhe na alma. Catatónico, sonhava acordado com os campos solarengos da sua aldeia beirã. Doía-lhe a saudade de um simples “bom dia”, de um bom dia português. Mas o pior de tudo, a altura mais dramática, era a época de Natal. Ficava prostrado e recolhia-se num pub cavernoso destilando a desventura numa zurrapa irlandesa, que ainda assim lhe levava as parcas libras de uma semana de trabalho.
Embora crente, nunca foi dado a práticas religiosas e a tradição natalícia esgotava-se na ementa melhorada. É verdade que quando era rapazito levava muito a sério os rituais e até houve uma vez que representou o pastor num Presépio Vivo que o padre da freguesia organizou, mas depois a vida empederniu-lhe os sentimentos. Porém, este ano, o espírito de Natal devolveu-lhe uma espécie de esperança anunciada. Um novo rumo. Desta vez ia ser diferente e percebeu-o quando sobrevoou pela última vez a Grande Cidade. Sem remorsos nem tristeza.

Noite de Natal. Póvoa de Santo António. O frio intenso já recolheu os retardatários. No largo arde abandonado um tronco de carvalho.Numa casa térrea, ligeiramente afastada, a luz ténue da lareira deixa entrever duas silhuetas sentadas à mesa. Um homem e uma mulher riem e trocam afagos como amantes em jantar romântico. Dois copos unem-se delicadamente. Tchim-tchim:
- Um Feliz Natal mãe.
- Um Feliz Natal filho.

sábado, dezembro 16, 2006

Desafio...


Um jovem rei foi surpreendido pelo monarca do reino vizinho, enquanto caçava furtivamente no bosque deste. O Rei (vizinho) poderia tê-lo matado no acto, pois tal era o castigo para quem violasse as leis da propriedade. Contudo, comovido pela juventude e simpatia do prevaricador ofereceu-lhe a liberdade, desde que, no prazo de um ano, trouxesse a resposta a uma pergunta difícil.
A pergunta era: O que realmente querem as mulheres ?
Semelhante pergunta deixaria perplexo até o homem mais sábio, e ao jovem rei pareceu-lhe impossível responder. Contudo aquilo era melhor do que a morte, de modo que regressou ao seu reino e começou a interrogar as pessoas.
A princesa, a rainha, as prostitutas, os monges, os sábios, o palhaço da corte, em suma, todos, e ninguém soube dar uma resposta convincente.
Porém todos o aconselharam a consultar a velha bruxa, porque somente ela saberia a resposta. O preço seria alto, já que a velha bruxa era famosa em todo o reino pelo exorbitante preço que cobrava pelos seus serviços.
Chegou o último dia do acordo e o jovem rei não teve outro remédio senão recorrer à feiticeira. Ela aceitou dar-lhe uma resposta satisfatória com uma condição: primeiro teria que aceitar o seu preço.
Ela queria casar-se com o cavaleiro mais nobre da sua corte, que por coincidência era o seu amigo mais intimo. O jovem rei olhou-a horrorizado: era feíssima, tinha só um dente, fedia que causava náuseas, fazia ruídos obscenos. Nunca havia deparado com uma criatura tão repugnante. Hesitou diante da perspectiva de pedir ao seu melhor amigo para assumir aquele terrível destino.
Não obstante, ao inteirar-se do pacto proposto, o cavaleiro afirmou que não era um sacrifício excessivo em troca da vida de seu melhor amigo.
Então, a bruxa, de sabedoria infernal, afirmou: "O que realmente as mulheres querem é serem soberanas de suas próprias vidas!"
Todos souberam naquele instante que a feiticeira tinha dito uma grande verdade e que o jovem rei estaria salvo.
Assim foi. Ao ouvir a resposta, o monarca vizinho devolveu-lhe a liberdade. Porém, que bodas tristes foram aquelas. Toda a corte assistiu e ninguém se sentiu mais desgarrado, entre o alívio e a angústia, do que o jovem rei.
O cavaleiro, entretanto, mostrou-se cortês, gentil e respeitoso com a sua consorte. A velha bruxa usou de seus piores hábitos, comeu sem usar talheres, emitiu ruídos e um mau cheiro espantoso.
Chegou a noite de núpcias. Quando o recente marido, já preparado para ir para a cama aguardava sua esposa, ela apareceu como a mais linda e charmosa mulher que um homem poderia imaginar! O cavaleiro ficou estupefacto e perguntou-lhe que transformação era aquela.
A jovem respondeu-lhe com um sorriso doce. Como tinha sido cortês com ela, em metade do tempo apresentar-se-ia com um aspecto horrível e na outra metade com o aspecto de uma linda donzela. Então, ela perguntou qual ele preferiria para o dia e qual para a noite? Que pergunta cruel! O marido apressou-se a fazer cálculos...
Poderia ter uma jovem adorável durante o dia para exibir aos seus amigos e, à noite, na privacidade de seu quarto uma bruxa horrenda ou ter de dia uma bruxa inconveniente e à noite, nos momentos íntimos de sua vida conjugal, uma linda e deliciosa jovem .

DEIXO-VOS O DESAFIO. VOCÊS O QUE TERIAM PREFERIDO? O QUE TERIAM ESCOLHIDO? SEJAM SINCEROS.
Boas bicadas

sexta-feira, dezembro 15, 2006

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Uma conversa de Natal


Uma família feliz está à mesa a jantar, quando o filho interrompe e pede para fazer uma pergunta:
- Pai, quantos tipos de seios existem?
O pai, um tanto surpreendido, responde:
- Bem meu filho, existem três tipos de seios. Aos 20 anos a mulher tem seios como mel, são firmes e redondos. Dos 30 aos 40 eles são como peras, ainda belos, porém um pouco caídos... aos 50 os seios ficam como cebolas...
- Cebolas?! Exclama o filho.
- Sim. Quando olhas para eles ficas com vontade de chorar!
Esta explicação deixa mãe e filha um tanto desconcertadas. Então a filha pergunta:
- Mãe também posso fazer uma pergunta, um tanto pessoal?
- Podes!
- Mãe, quantos tipos de pénis existem?
A mãe não hesita:
- Bem filha, um homem passa por três fases distintas. Aos 20 anos o pénis é como um tronco de pinheiro, respeitável e firme. Dos 30 aos 40 anos o pénis é como o chorão, flexível mas confiável. Após os 50 anos o pénis fica como uma árvore de Natal.
- Árvore de Natal?! Pergunta a filha.
- Isso mesmo. Morto da raiz até à ponta e as bolas ficam penduradas como decoração! E o pior: só se arma uma vez por ano!!!

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Crónicas da Galinha Riça - O Natal

No pretérito dia 1 de Dezembro, o Pai-Natal apresentou na Câmara Municipal uma exposição em que alertava as entidades competentes para a possibilidade de não estarem reunidas em Canas de Senhorim as condições necessárias para o cabal desempenho do exercício das suas funções, isto é, a distribuição do Cabaz Natalício.
Entre outros considerandos, denunciava a fraca iluminação da vila e o estado deplorável em que se encontram passeios e ruas. Vejo mal e o reumatismo ataca-me as pernas. Se a tarefa de distribuir os presentes de Natal em condições favoráveis já é de difícil execução, quanto mais confrontado com o estado lastimoso em que se encontram os acessos daquela vila, declarava a certa altura no documento.
Terminava afirmando que, se nada fosse feito para alterar tal estado de coisas, poderiam os canenses ver-se privados da visita do Pai-Natal, circunstância que poderia trazer consequências inimagináveis e da qual declinava qualquer responsabilidade.

Do gabinete da Presidência da Câmara foi despachado ofício dirigido ao Pai-Natal, cujo conteúdo passo a transcrever:

São Nicolau
Eminência:

No respeito pelos valores da tradição Cristã, incumbe-me esclarecer Vossa Eminência que a apreensão traduzida em exposição dirigida a esta Câmara foi por mim antecipada em Maio do corrente ano.
Assim, consciente dos problemas apontados e da consternação que daí podia advir, disponibilizei à entidade competente uma verba considerável, de forma a colmatar as dificuldades referidas e obviar previsíveis inconvenientes.
Por imperativos ou prioridades que só os responsáveis daquela vila poderão explicar, a verba foi canalizada para outros fins que não os que justificaram tal reforço financeiro, designadamente a construção de um anfiteatro e a organização de uma semana de “forrobodó”, porventura legítimos, mas destituídos do carácter urgente que se impunha considerar.
Contudo, conhecendo o sentimento muito pouco natalício que os canenses nutrem pelo seu município, afigura-se-me catastrófica a possibilidade de Canas de Senhorim ficar privada da visita do Pai-Natal pelos motivos invocados.
Nesta conformidade, sugiro humildemente a Vossa Eminência que convoque os canenses a concentrarem-se no anfiteatro na noite de 24 de Dezembro, em hora a determinar, para aí poderem receber ordeiramente os seus presentes de Natal.
A zona de concentração sugerida foi criteriosamente seleccionada e satisfaz os requisitos previamente determinados para a execução de tão nobre tarefa: Boa visibilidade nocturna, arruamento espaçoso e devidamente pavimentado, passeios largos e rotunda acautelada para manobrar as renas de que Vossa Eminência é mui digno proprietário.
Julgando assim obviar maiores inconvenientes, subscrevo-me atenciosamente endereçando votos de um Feliz Natal.(Assinatura ilegível).

Pois é, meus caros conterrâneos. Este ano, presentinhos, só para os lados da piscina.

Bons repenicos

segunda-feira, dezembro 04, 2006

As Quatro-Esquinas



Cai a tarde nas Quatro-Esquinas. O vazio amputado de uma das fachadas é como um bocado arrancado de mim. É um pouco da minha história que se esvai, que se perde irremediavelmente, como perdidas estão outras memórias de outros tempos e de outros lugares. Este largo soalheiro anuncia agora o peso da modernidade e do progresso, e as esquinas, outrora cúmplices dos meus passos de catraia exploradora, remetem-me agora para outros passeios.
Aos domingos, pela mão da minha tia, lá íamos vaidosas ao Café Rossio, ex-libris da terra, onde o café era mais café. Eu, na mira do “rajá” prometido, ela, de rapaz promissor. O Sr. António João, bem-humorado, atirava um piropo amoroso à minha tia, do género “ainda dizem que as flores não andam”, enquanto escolhia meticulosamente os grãos de café. Primeiro espalhava-os numa bandeja de servir à mesa (naquele tempo um simples café tinha honras de bandeja e empregado de laço). Depois, munido de artes que só ele dominava, esticava o dedo indicador e exercia a sua justiça ao lote, “tu para aqui, tu para ali e tu vais fora”. Que cheirinho emanava do café que o Pedro trazia para a mesa, após aquela selecção.
Às vezes também íamos aos sábados. Creio que na altura se trabalhava aos sábados de manhã, mas, mesmo assim, a minha tia lá arranjava tempo para ir à bica, devidamente acompanhada pelo salvo-conduto, que era eu. Não pensem que nessa altura, as moças casadoiras se livravam de censuras e reparos se ousassem frequentar sozinhas o Café (se calhar, ainda hoje sobrevive, nalgumas mentes, essa reprovação). Ora, para obviar tal desaprovação social, nada melhor que uma sobrinha como livre-trânsito para realçar o pudor. Era aí que entrava eu, no meu vestidinho de chita e sandália domingueira. Depois de inspeccionada até às profundezas do lóbulo auricular, não fosse a menina comprometer o bom-nome da família com alguma crosta de surro pespegada à tez, “ala que se faz tarde”, aprovava a minha tia em ânsias de rapariga solteira.
Despachado o “rajá”, cirandava por entre as mesas de tampo em mármore escuro e cadeiras em madeira castanha, confortavelmente resistentes ao meu baloiçar de menina. Sentados ao fundo, nas poltronas, senhores distintos, discutindo assuntos sérios, enchiam a minha imaginação de tramas e conspirações, pois os tempos eram conturbados e o local discretamente apropriado. O Professor, muito cioso da sua pochette, conjurava intrigas revolucionárias no conforto da lareira granítica. Comunista devoto, anunciava aos convivas golpes e contra-golpes a cada artigo do jornal. Os jornais eram a sua cartilha. Solitário e indiferente aos remoques políticos, o Artista, fechado na sua habitual gabardina, fumava pesaroso. Na sua loucura inofensiva, distinguia-se pela pose sobranceira e pela boquilha dourada, da qual, a espaços, retirava citações poéticas. No bilhar, senhores mundanos, de fato e gravata baratos, trocavam impressões sobre fortunas perdidas no casino da Figueira.
Fascinavam-me a mesa de bilhar e as carambolas conseguidas por aqueles senhores perfumados. Gostavam de se meter comigo e eu fazia-lhes o gosto empurrando-lhes levemente o taco no pico da concentração. “O raio da miúda!”, praguejavam, enquanto eu, pernas para que vos quero, escapulia ágil por entre as cadeiras e estacionava junto às montras, a namorar os bonequinhos, as garrafinhas, os livros aos quadradinhos, os chocolates e os rebuçados. Só o Mário Pica, na sua tonteira plácida, me tirava do deslumbramento. Mãos atrás das costas, corpo dobrado para a frente, sorriso seráfico, percorria as mesas do café na esperança de um cigarro ou de uma beata esquecida. Menino grande sem condição, aprendeu a sorrir porque sim, e nunca mais se esqueceu.
Também ali se faziam e desfaziam namoros, se davam e devolviam fotografias, se prometiam noivados e juras de casamento, para gáudio do Sr. Pinga das Gordas, que via assim assegurados os proventos de fotógrafo oficial da terra. Por entre bilhetinhos trocados à socapa e intimidades disfarçadas, sempre havia tempo para tentar a fortuna que o Sr. Acúrcio, o cauteleiro, garantia em duodécimos. “Ele há horas de sorte...”, apregoava, ainda que ciente do seu próprio infortúnio e da maleita que lhe tolhia os membros.
Quando a minha irrequietude ultrapassava os limites que a minha tia considerava adequados, era remetida para os banquinhos de ripas vermelhas do terreiro da capela. Bem que eu queria misturar-me com os rapazes da minha idade que por ali jogavam à bola, mas o olhar reprovador da minha tia e o vestido imaculado desaconselhavam qualquer ousadia. Ali ficava, joelhos juntinhos, como a minha mãe me tinha ensinado, apreciando o cheirinho da fruta que o Sr. António e a Menina Natália dispunham à porta do Lugar, as senhoras da Varanda da Má Língua, que desconheciam os ensinamentos da minha mãe, o Sr. Pereirinha, muito dono do parqueamento do seu Mercedes, a loja do Sr. Alberto e da Dona Eracema, onde a mãe fazia as compras, a padaria do Sr. César, que vendia a melhor broa do mundo, a Socolar, onde se alinhavam aqueles “dossiers” fantásticos de argolas, novidade na época, que ainda preservo algures no sótão, o Café Belcanto e as filhas do dono, por sinal muito bem criadas, o Sr. Pinheira da Barbearia eternamente à conversa com o Sr. Jorge da Farmácia e, fascínio dos fascínios, o colorido atrevido dos vestidos curtos das mulatas hospedadas na Pensão Monteiro, vítimas da descolonização das províncias africanas, autênticas impalas fora do habitat, tentando, com o brilho sedoso que lhes emergia dos corpos, ofuscar frios desconhecidos e disfarçar mágoas passadas.
Se fosse por altura dos Santos Populares ainda podia assistir ao despautério de alguma senhora do Rossio de Baixo, retardada na recolha dos vasos que uns “bandidos”, pela calada da noite, como manda a tradição, deixaram a embelezar os passeios das Quatro-Esquinas. “Então, os vasos ganharam pernas?”, perguntava o Sr. António João, “ganharam pernas o carvalho”, respondia esbaforida a senhora. Ruborizava a minha tia, ria a plateia e consolava-me eu, autorizada pelas circunstâncias a registar os palavrões proibidos.
Noutras alturas quebrava-se o encanto. A loucura instalava-se no largo, personificada na herança dramática da guerra do ultramar. O ex-soldado, se bem me lembro, maqueiro de profissão, de tanto mutilado carregar, acabou amputado do juízo e baralhado no cenário. A epilepsia tomava conta dele e as Quatro-Esquinas transformavam-se em palco de batalhas sangrentas e os transeuntes em inimigos emboscados. Espumava ordens e desacertos para incómodo dos presentes e desespero da sua mãe que acorria ao largo, suplicando humildemente que lhe internassem o filho. Carregava sozinha, ainda, uma guerra acabada.
Intimidava-me o infortúnio do soldado-maqueiro e então, apertadinha de xixi que o medo tornara premente, traçava uma linha recta entre o terreiro da capela e a porta do Café-Rossio e corria desenfreada para o aconchego do café. Deixava para trás o largo e o passado que agora me ocorre.

***

Cai a tarde. Num banco do terreiro da capela de S. Sebastião estendo o olhar de esquina a esquina, reconstruo alçados e montras, retenho cheiros e sons, e recordo carinhosamente as pessoas que habitaram as Quatro-Esquinas da minha meninice.


Cristalinda

segunda-feira, novembro 27, 2006

O Natal anuncia-se

Pois é, já só falta um mês para o Natal. E quem é que se lixa, são aqui as galinhas. Ele são filhós, rabanadas, bolo-rei, broinhas doces, coscorões... pois é, e qual é a alma destas doçarias todas? Ora, nem mais, os ovos. Vai daí, galinhas ao remo, galera natalícia ao ritmo do tambor, ovo aqui, ovo acolá, sem descanso nem sossego. Bem, nem tudo são penas, bem pior estão os perus. Pronto, agora tenho que ir remar. Fiquem bem e animem-se com este cheirinho a Natal.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Ainda o meu homem da pizza

Nunca tive um caso no local de trabalho. Até há pouco tempo.
Quando saí de casa, o meu irmão mais velho, nas suas recomendações, limitou-se a desaconselhar-me homens casados e namorados com residência a mais de 15 quilómetros. Ri-me dele, percebendo-lhe a ironia. Tinha ganho muito cedo a árdua tarefa de substituir o nosso pai, assumindo por inteiro, ainda que por intuição, o estatuto de educador e a tarefa ingrata de me proteger dos “galifões”, designação que ele dava aos meus namoraditos impúberes, que ele, convicto do seu papel paternal e já conhecedor das angústias do corpo, desaprovava sistematicamente - não estão à tua altura - dizia ele, mais preocupado que a irmã, a despertar sexualidade por tudo quanto era poro, o presenteasse com um sobrinho precoce, do que propriamente com a qualidade moral dos meus pretendentes, ou dos meus pretendidos!
Tivemos muitas desavenças, por causa daquele medo latente. Lembro-me que por essa altura, a propósito de um comentário inocente sobre um ligeiro atraso menstrual, ele e a minha mãe entraram em pânico, obrigando-me a confessar aquilo que eu não tinha feito. Não sei se foi por me sentir ultrajada, se por gozo, se por maldade, remeti-me a um silêncio comprometedor. Sucedeu-se um interrogatório confrangedor, com a minha mãe a tentar pôr água na fervura e o meu irmão, histérico, cuidando em questionar os meus dotes mentais. E eu moita-carrasco. Voltou a serenidade àquela casa passados uns dias, quando, já saturada com o mau ambiente e os olhares furtivos que me eram dirigidos, lhes dei a notícia tão desejada por ambos – voltou-me o período. A partir daí o meu irmão reformulou a sua posição quanto aos “galifões”. Talvez tivesse concluído, que uma vez iniciada, de nada lhe serviam agora desaprovações e que o melhor era prevenir males maiores - consulta de ginecologia - arriscou ao jantar, consultando a reacção da minha mãe. A minha mãe ainda sugeriu o Dr. Pega, mas concordou que para o efeito o melhor era mesmo “uma” ginecologista.
A minha primeira visita a “uma” ginecologista também dava uma história assaz curiosa. Ficará, quem sabe, para outra altura. O meu irmão casou, eu cresci e a nossa relação ganhou contornos de intimidade que se distanciaram definitivamente dos princípios conservadores e paternalistas exercidos na educação da irmã adolescente. Assim, quando fui para a faculdade, fez questão em dizer-me, com um sorriso matreiro – homens casados e namorados a mais de quinze quilómetros, nunca. Olhei-o com ternura e lembrei-me do pai. O que diria o pai se ali estivesse? Acrescentaria “colegas de trabalho”? Nunca saberei, mas agrada-me pôr estas palavras na boca do meu pai, em jeito de prenúncio.
- Homens casados, colegas de trabalho e namorados a mais de quinze quilómetros, são de evitar.

Boas minhocas
PS: Para quem o título desta bicada não fizer qualquer sentido, recomendo a leitura, pela ordem indicada, das seguintes bicadas:
2ª Mexericos

quarta-feira, novembro 15, 2006

Faca na goela


As galinhas andam preocupadas, pois julgavam que o seu galinheiro era inviolável, isto é, que não houvesse raposa, pilha galinhas ou qualquer outro animal capaz de violar a sua (delas) privacidade.
Na bicada Processo C-525/06 insistimos para que, alguém bem informado, nos explicasse como é que isto funciona. Como não obtivemos qualquer informação deixo aqui o repto para que os visitantes mais esclarecidos nos elucidem definitivamente. Disseram-nos que o _DRIX_ seria a pessoa ideal, mas parece-nos que anda muito afastado aqui do Mulherio. Enfim, qualquer informação fundamentada será bem vinda.

Pode um utilizador normal da NET (não estou a falar dos administradores do Google, Blogger, etc.) obter o IP da minha ligação à NET? Se sim, em que moldes e circunstâncias?
Agradecemos a vossa colaboração, pois aqui o Mulherio não tem formação nem conhecimentos nesta área e os contactos possíveis ainda nos deixaram mais baralhadas.

A Presidente Achadiça

sexta-feira, novembro 10, 2006

O número 254

O meu Juvenal anda preocupado. Com um número. O número 254.
Não é um número qualquer. Este número alterou muitos hábitos cá em casa. Por causa dele, do número, que é o mesmo que dizer, do meu Juvenal, ando numa roda-viva, reinventando ementas e quebrando rotinas. Menos preocupante é o número 166, diz ele, tentando obter a minha condescendência para com o digestivo pós-jantar, que ele carinhosamente apelida de “chiripiti”.
Eu bem o avisei que temporadas de sofá, pipas do Dão e tabaco a granel não lhe trariam grande futuro. Pois aí está o resultado: Colesterol - 254, triglicéridos – 166.
Anda inconsolável, «porra, não posso comer, não posso beber…», depois, olha para mim resignado, com aquele sorriso maroto que lhe ficou de criança, «pois, já agora só falta isso…», e eu, «atreve-te!». Mas arrebitou. Agora desdobra-se em intenções: Que vai andar de bicicleta, evitar gorduras, moderar o consumo de álcool (vejam o preciosismo, não é deixar de beber é moderar) e, milagre dos milagres, deixar de fumar. Mantive o ar mais sério possível, para que ele não vacilasse nos propósitos, mas lá no fundo apetecia-me desdenhar de tão boas intenções. Adivinhando o meu cepticismo foi peremptório, «a partir de amanhã não fumo mais».
Efectivamente, não fumou o dia inteiro. À noite bufava lá por casa, desassossegando-me os nervos e a paciência. «Acho que vou dar uma volta para desanuviar a ansiedade», disse-me ele, acentuando os benefícios que uma caminhada traz ao organismo e à inquietação da abstinência. Senti que o devia acompanhar mas estava tão entretida no computador a tentar retocar o malfadado logótipo do Mulherio (queremos tirar-lhe aquele fundo preto mas não está fácil) que abdiquei da solidariedade devida ao meu companheiro e deixei-o sozinho entregue aos seus dramas.
Passou-se uma hora. Conhecendo-lhe os hábitos comecei a estranhar tamanha ausência. O telemóvel ficou em casa, porém não encontrei as chaves do carro. Tal facto levou-me a deduzir que tinha ido espairecer longe. Passaram-se duas horas. Agora comecei a ficar preocupada. Onze e meia da noite e o meu Juvenal sem aparecer, ele que não é dado a hábitos nocturnos nem a socializações after-eight. Comecei a telefonar aos amigos mais chegados e, por via da minha preocupação, a pôr toda a gente em alvoroço.
Já me prestava a sair porta fora no seu encalço quando, vindo do quarto, me aparece estremunhado na penumbra do corredor. Fiquei desconcertada. Olha-me este! Tanto discurso e foi espetar o cu na cama, sem pejo nem aviso. Trovejaram raios e coriscos. Pu-lo ao telefone, a debitar desculpas e justificações aos amigos. Depois serenei. Não fazes ginástica de uma maneira fazes de outra. Tenho uma terapia especializada para as tuas maleitas. Volta para a cama que eu já lá vou ter.
Ele há males que vêm por bem.

Boas Bicadas

quinta-feira, novembro 09, 2006

Processo C-525/06

[...]
O Tribunal da Covilhã começa quarta-feira a julgar uma queixa-crime por difamação, calúnia e injúria movida pelo presidente da Câmara local, Carlos Pinto, contra o alegado autor de um blog na Internet.
Carlos Pinto alega ter sido sujeito a situações de «vexação», sendo «motivo de todas as conversas, chacotas e cochichos», por causa do blog.
Segundo a agência Lusa, no banco dos réus vai estar um morador da vila da Boidobra, junto à cidade, indiciado pelo Ministério Público como autor do blog «Chicken Charles ¿ o anti-herói» (http://covilhas.blogspot.com).
O site contém dezenas de artigos publicados entre Maio de 2004 e Fevereiro de 2006, apresentados como as confissões de uma personagem designada de «Chicken Charles», o galo «que é Dono do Galinheiro da Quinta da Covilhã» e que «controla todas as galinhas».
O presidente da Câmara diz ser acusado da «utilização de dinheiros e obras públicas para fins particulares», nomeadamente nos artigos intitulados «O casamento da minha franguinha» e «Os meus Amores».
[...]
O alegado autor foi indiciado através do registo dos seus acessos à Internet. No processo, a defesa alega que qualquer pessoa podia ter feito esses acessos porque a ligação era partilhada e o réu «estava ausente da Covilhã na data em que foi criado o endereço chickencharles@iol.pt.
Ora, ouvi falar em galos e galinhas e fui a correr ver o que se passava. Fiquei atónita. Então não é que o referido blog continha uma quantidade de expressões e referências que o Mulherio costuma usar. Uma vez que aquele blog data de 2004 e o nosso de 2006, senti imediatamente o peso da suspeição de plágio a carregar-nos as penas e a apertar-nos as goelas. Quero deixar bem claro que este facto é mera coincidência. Galinhas há muitas, quer seja na Covilhã ou em Canas de Senhorim.
Como se isso não bastasse, o autor ou autores do dito blog estão a braços com a justiça(?), acusado(s) de difamação, porque glosaram sua excelência o presidente da Câmara da Covilhã. Estou curiosa por saber o veredicto, mas o que me incomoda mais não são os pruridos do presidente nem a malícia dos textos. O que me incomoda verdadeiramente é a possibilidade de qualquer cidadão visado num texto menos honroso (atenção que eu não digo ofensivo), poder, através do Ministério Público despoletar um processo judicial com a consequente identificação do(s) IP’s (aqui não sei como isto funciona: é o IP do computador onde o blog foi criado?, os IP’s dos colaboradores que carregam os posts?. E os comentadores? Também é possível detectar o IP dos comentadores? É que há para aí cada comentário! Expliquem-me lá esta parte).
O Mulherio nunca foi ofensivo para ninguém, no entanto, a espaços, lá sai uma tirada mais atrevida ou deturpada, visando brincar com determinadas pessoas ou grupos de pessoas. Será isso suficiente para, em caso de queixa, o MP encontrar matéria para formalizar a acusação e solicitar a identificação das autoras do berloque. A Cris diz que sim, mas também afirma que
isso era o melhor que nos podia acontecer. Passaríamos a ter 50.000 visitantes por dia e ela teria todo o gosto em nos representar (em causa própria). O único problema era a perca do anonimato. Esta parte também me incomoda – a perda de anonimato. A exposição pública das galinhas. A minha em particular.
Para evitar maiores desgraças solicito a todos aqueles que se sentirem lesados pelas nossas bicadas, a sensatez de o transmitirem por e-mail. As galinhas serão as primeiras a retratar-se adequadamente, poupando-vos inconveniências e outras merdices.

Boas bicadas
A Presidente Achadiça

terça-feira, novembro 07, 2006

Mexericos

Diz o senso comum, seja lá isso o que for, que as mulheres são muito dadas a mexericos. Talvez o papel que lhes esteve reservado desde os primórdios da sua existência, confinadas à exiguidade da caverna, cuidando filhos e afazeres domésticos, tenha determinado essa apetência para o convívio e para a conversa. Matavam assim o tempo e outros temores, na espera dos homens que, lá fora, silenciavam palavras no ofício da caça, não fosse o ruído transformá-los em presas. Assenta neste cenário a teoria vigente das diferentes capacidades do cérebro humano, que atribui à mulher aptidão para se desmultiplicar ao mesmo tempo em diversas tarefas e raciocínios , por oposição ao homem que privilegia a concentração num só assunto de cada vez.
O papel caseiro das mulheres alterou-se substancialmente com o advento da revolução industrial. As mulheres romperam o circuito fechado do lar e o tempo e predisposição que antes lhes sobravam para manter o “diz que disse” com a vizinha e as amigas, tornou-se escasso. Sim, porque o facto de trabalharem fora de casa não as privou dos cuidados domésticos e da educação da prole, circunstância que só a revolução sexual dos anos 60 do século XX e o advento dos electrodomésticos viria alterar ligeiramente. Com estas alterações sociais, as mulheres perderam a exclusividade do mexerico a favor dos homens, os quais, a coberto de maneirismos socialmente autorizados, se permitem, agora, exercer com idêntica mestria e superior desempenho o cochicho e a maledicência.
Vem isto a propósito do mexerico que o Hipólito da contabilidade partilhou com o Sr. Teodoro do 5º andar:
- Verdade pá. Vi-os no jardim a partilhar uma pizza. O cagão do “João Cerimónias” com a jurista, aquela alta, cavalona, que anda sempre de calças de ganga. Não, não é a pencuda, é a outra. Aquela que se divorciou há pouco tempo.
O Teodoro, de olhar arregalado, chegou-se mais e murmurou com cumplicidade:
- A doutora e o “Cerimónias”! Essa nunca me enganou… Cá p’ra mim já andava com o gajo quando estava casada. Mas esse gajo não anda a comer a Ritinha da recepção?
- Ó Teodoro ele anda a comer é num sítio que eu cá sei. De onde pensas que lhe vem a alcunha do “Cerimónias”. É só palavrinhas mansas a dar ao delicado, amigo Hipólito para aqui, amigo Hipólito para ali. Sabes o que é que ele me disse há tempos… “amigo Hipólito acomode-me lá os números antes que eu desvaneça”. Achas isto linguagem de homem? E mais “na relação entre a empresa e o cliente o mais importante é a sedução…”. A sedução, os afectos e por aí fora, dizia o gajo. Achas isto normal?
- Bem, é um bocado suspeito. Mas a Ritinha, agora a doutora…
- Qual Ritinha qual quê. Essa é uma “vai com todos”, desde que tenham carro com cilindrada acima dos 1600 cc. e estofos de cabedal.
- É pá, não sejas injusto, a Ritinha é uma querida. Lembras-te do almoço de Natal? Bebeu uns copitos e tive que levá-la a casa. Os copos deram-lhe para o sentimento e desabafou amores inconfessáveis pelo caganças do “Cerimónias”. Uma coisa deprimente.
- Levaste-a a casa! E comeste-a?
- Então! Já esqueceste as regras. Isso nunca se pergunta.
- Está bem, mas comeste-a ou não?
O Hipólito não obteve resposta. Ambos sorriram perante a cumplicidade que emanava desta última troca de palavras. Os códigos masculinos são muitas vezes insondáveis e a subtileza com que assuntos destes são tratados surpreendente. Ficou no ar a impressão de que efectivamente algo se tinha passado com a Ritinha da recepção e o Teodoro, porém, sem o vínculo da palavra expressa ninguém poderia assegurar que ele afirmou aquilo que sugeriu nem ignorar que não possa eventualmente ter acontecido. Técnicas de mexerico masculino na primeira pessoa.Nove horas da manhã. Na recepção, a Ritinha, elegante como sempre, exibia excesso de maquilhagem, na tentativa desesperada de disfarçar olheiras recentes. Saúdo-a a contra-gosto e dirijo-me ao elevador que já era aguardado pelo Sr. Hipólito.
- Bom dia doutora.
- Bom dia Sr. Hipólito.
A forma como me cumprimentou, não sendo desrespeitosa, soava, na entoação, a um nível de confiança despropositado. No olhar deixou entrever um sorriso malicioso, só corrigido após a minha indisfarçável desaprovação.
Entrámos no elevador. Eu bem sabia o que lhe ia no espírito. O que ele me quis transmitir foi, muito simplesmente, que era portador dos meus segredos, conhecedor dos caminhos da minha intimidade e eu, no mesmo sítio onde já me senti tão confortável, apanhada na surpresa de um beijo atrevido, sinto-me agora nua, desconfortavelmente despida pelo olhar insidioso do Hipólito da contabilidade.
Boas minhocas

sexta-feira, novembro 03, 2006

Crónicas da Galinha Riça - Quintal em Movimento

Na sequência da tomada da Junta de Freguesia pelo Movimento e da troca de lugares na Câmara Municipal, esvaiu-se muita da animação a que os nossos conterrâneos estavam habituados. Este efeito contribuiu para um crescente desapego da luta por parte de sectores ditos moderados, efeito que urgia inverter rapidamente. Até há quem afirme que a ala mais radical do MRQ ( Movimento para a Restauração do Quintal) se insurgiu com a apatia vigente, exigindo ao presidente do Jumento (Junta e Movimento) que esclarecesse publicamente as suas intenções.
Confrontado com esta onda de insatisfação, o Jumento reuniu com carácter urgente. Era preciso fazer qualquer coisa para reactivar energias:
- Reactivar ou reanimar? - perguntou o responsável do departamento cultural do MRQ.
- Reanimação vais tu precisar se continuas com essas piadinhas à Gato Fedorento - surpreendeu-o o presidente com um olhar repreensivo.
- É pá, que má disposição… pois fiquem sabendo que eu fiz o trabalhinho de casa e já trago um esboço de iniciativas para rea…, para animar a malta. Para começar e recuperando tradições culturais sugiro que se organizem competições de chinquilho, bisca lambida, malha, corte de chouriço, levantamento de copo, matraquilhos, peão, prego, garrafão, estátua, mata, elástico, lá vai milho…
Aqui, este elemento empreendedor fez uma pausa para auscultação, logo aproveitada pelo presidente que, de olhar ensombrado, atalhou:
- Isso do “lá vai milho” tem alguma coisa a ver com aquelas marias do blog do “Mulherio”? Já agora só falta uma luta de galos. Isto aqui não é silo onde as meninas possam vir debitar carências e reclamações. Se quiserem participar nos eventos, angariar milho ou roçar as calcinhas no elástico, organizem-se como associação e dêem o corpinho ao manifesto. Montem uma barraquinha que à noite logo se vê.
- Ó presidente, olhe que numa luta de galos ninguém o batia – insinuou, jocoso, um dos adjuntos para a área da desinformação.
Todos conheciam o talento do líder em eliminar adversários políticos e aquela observação foi acolhida com um aceno geral de assentimento. Aflorou um sorriso no semblante do presidente. Relaxou a mesa e prosseguiram os trabalhos.
- Música. Muita música, gaiteiros, pauliteiros, chocalheiros, bombeiros…
- Bombeiros!? – repetiram em uníssono os presentes.
- Sim, podem ser aqueles de Lavacolhos.
- Ai minha nossa senhora, a quem isto está entregue – desesperou o presidente – ó homem, “Zés Pereiras”, “Zés Pereiras” é o que tu queres dizer.
O homem da cultura indagou com o olhar os restantes elementos na esperança que alguém o elucidasse quem eram aqueles. Porém, como resposta só obteve exclamações de indignação.
- Olha qu’esta! Ó homem, lá por tocarem bombos não são bombeiros. Como é que tu não sabes isto?
- Vocês é que são uma cambada de ignorantes. Tenho um primo que é bombeiro e toca na banda de Lavacolhos. Qual é o mal dos bombeiros tocarem bombo numa banda de bombos.
Fez-se um silêncio comprometedor só quebrado por um grito estridente do presidente.
- Tirem-me daquiiii! Eu não acredito nisto.
De mãos na cabeça o presidente esforçou-se por serenar.
- Risca bombeiros e põe “Zés Pereiras”. Mais alguma coisa?
- Bem, faltam as exposições…
- E que género de exposições?
- Estava a pensar numa exposição canina. Dada a quantidade de cães que por cá temos e a estima que os donos lhes têm parece-me viável e económico.
Os dirigentes entreolharam-se hesitantes. Depois, fixaram o presidente aguardando confirmação. Este, questionou o tesoureiro:
- O que é que achas?
- É capaz de ser uma boa ideia. Não sei é se temos cinéfilos que justifiquem o evento.
- Cinófilos – corrigiu o presidente – mas está tudo bêbado ou quê! Cinéfilos, cinema, cinófilos, cães.
- Está bem, está bem… desculpe o lapso. Não te chateies que eu trago o meu cinófilo.
- Trazes o quê! Esquece... esquece - o presidente inspirou fundo e sentenciou agastado.
- Parece-me que estas componentes, desporto, competição, música, espectáculo e exposições, podem constituir uma base sustentável para lançar o programa do evento. Já tenho um nome para o acontecimento. Quintal em Movimento. O que é que acham?
- Quintal em Movimento! Mas ó presidente, esta matéria é da competência da Junta ou do Movimento – perguntou um dos elementos, conhecido pela mania de estar sempre a desconversar.
- Olha, mais uma gracinha dessas e passas a assistir a todas as Assembleias Municipais. Sessão encerrada.
Por motivos óbvios, desta reunião não foi elaborada acta.

Bons repenicos

terça-feira, outubro 31, 2006

Para desanuviar

Há muitas pessoas que escrevem o número sete com uma barra horizontal suplementar a meio do número, sem saber a razão dessa acção.


Querem saber porque esta prática sobreviveu até aos dias de hoje?
Há que andar muitos séculos atrás, até aos tempos bíblicos:
Estava Moisés no Monte Sinai quando Deus lhe deu os 10 mandamentos e ele os leu à multidão, um a um...




E assim sucessivamente. Quando chegou ao sete, Moisés anunciou...





E então, todas as vozes começaram a gritar:




E foi assim. Boas bicadas... na respectiva.

segunda-feira, outubro 30, 2006

A culpa é dela, só quer é vadiar...

“Se pusermos carne descoberta na rua, ou no jardim, ou no pátio das traseiras, e vierem os gatos e a comerem, de quem é a culpa? Dos gatos ou da carne descoberta?”, afirmou o xeque Taj Din al-Hilali durante um sermão recente.
Hilali referia-se ao caso de vários muçulmanos presos e condenados a pesadas penas de prisão por violação em grupo de várias mulheres e sugeriu mesmo que a culpa foi da maneira imprópria como as vítimas se vestiam. “O problema é a carne descoberta. Se a mulher estivesse na sua casa, no seu quarto, com o ‘hijab’ (véu islâmico) vestido, nada disto teria acontecido”, afirmou, criticando ainda as mulheres que se “abanam sugestivamente” e que usam maquilhagem, as quais considerou serem “instrumentos do Diabo para controlar os homens”.
In Correio da Manhã


Não me parece que os muçulmanos em geral se desmarquem intimamente da opinião do xeque não sei das quantas, mesmo que publicamente não a subscrevam. Esta gente reserva ainda, na sua tradição mais ortodoxa, um lugar de escravidão à mulher, remetendo-a para uma lugar menor no contexto dos direitos de cidadania e obrigando-a, através de “tribunais religiosos coercivos”(?) e práticas de censura comunitária, a um papel social de inqualificável subjugação.
A infeliz analogia do referido xeque aponta para a ideia de que a mulher, por ser um simples bocado de carne, é destituída daquela dignidade que distingue o ser humano de todos os outros seres, isto é, a racionalidade, a consciência e o poder de decidir sobre os seus actos. Esta comparação destrói-se a si própria, uma vez que um ser destituído de vontade própria não pode ser responsabilizado ou culpado pelos seus actos. Como pode então afirmar que a culpa é das mulheres se ao mesmo tempo não se lhes reconhece capacidade para escolher? Pode um bocado de carne ser culpado de alguma coisa?
Enraizada no mais obscuro machismo e a coberto de temores inspirados na própria fraqueza humana, sua natureza e crenças, a linha de pensamento do fanatismo islâmico, tende a radicalizar comportamentos e a inverter apreciações, perante tudo o que não se ajuste à sua linha de raciocínio e conhecimento medievais. Se exceptuarmos a cultura clássica greco-romana, nunca as religiões e a nudez do corpo humano se deram bem. Também o Ocidente medieval já a tapou quase completamente para preservar homens e santos das afrontas apetecíveis da carne, como se não fosse esse determinismo da natureza, a apetência pelo corpo do outro, a origem da humanidade.
Pode acasalar-se às escuras ou à média luz, por vergonha, inibição ou, no caso das mulheres, porque não havia vaga na depilação, mas, não tivessem homens e mulheres a noção e memória do corpo, a ver se a luz não se acenderia. Porquê esta necessidade do homem, sim, homem com letra pequena, de negar aos olhos o que mente e corpo desejam, só porque se lhes pede para admirar com contenção, desejar com moderação e obter com autorização. Será assim tão difícil?! Parece que sim, a avaliar pela quantidade de mulheres violadas por este mundo fora.
Assim sendo, na mesma linha do xeque nsdq, recomendo-lhe que, naqueles casos, e segundo o seu raciocínio, em vez de tapar a carne, cegue os gatos.

Bons repenicos

domingo, outubro 29, 2006

O meu homem da pizza

Ontem enviou-me uma mensagem muito pouco profissional. Hoje atirou-se de cabeça. Logo no elevador, onde não raras vezes me ocorre que deve ser um sítio excelente para amar. Creio que é no filme “Atracção Fatal“, que a Glenn Close e o Michael Douglas têm uma cena escaldante no elevador. Embora no filme aquela paixão acabasse muito mal, não me apoquentaram receios nem eu me revi no papel trágico de uma Glenn Close desmesurada.
Soube-me bem ser atirada contra a parede fria de alumínio e invadida por aquele cheiro a perfume masculino. Foi um beijo rasgado, quase roubado pela surpresa do gesto. Teve a delicadeza de não me tocar com as mãos. Só a boca dele rasgando a minha e a pressão do corpo dele sobre o meu. Entrevi-me no espelho, braços descaídos, na mão direita a pasta, o braço esquerdo sabia-o ocupado pelo saco. Não me lembro onde ele tinha as mãos, sei que não me tocou com elas. Eu também não. Ficámos suspensos pela boca, a trocar paladares de café matinal e hálitos a menta dentífrica.
Plim, 5º andar. «Vemo-nos ao almoço…», não percebi se perguntou se afirmou, nem a porta do elevador deu tempo para mais qualquer esclarecimento. Fiquei sozinha, descomposta por dentro, a saborear.
Plim, 7º andar. Saí.
Devolvida à realidade do escritório comecei a congeminar desgraças. Logo agora que já tinha conseguido a tranquilidade emocional que o divórcio me privou. Tão bem que estava, eu a gata e os meus livros, a minha música, os meus filmes, sem nenhum homem no horizonte, livre de mágoas e desamores. Um beijo, um simples beijo veio agitar e criar tumulto nesta minha cabeça, que em vez de estar concentrada no que diz o meu interlocutor, paira e gira e roda com o vento, como liceal iniciada em baile de finalistas.
Passei uma manhã em desassossego, desejando e temendo a hora de almoço. Se ele não telefona é porque vai aqui aparecer. Ele é que disse «vemo-nos ao almoço». Será que perguntou e espera que eu lhe ligue a confirmar. Se quer almoçar comigo é ele que deve telefonar. Eu sou uma rapariga prática, mas nestas coisas de jogos amorosos sou uma nulidade. Não, não lhe posso telefonar. E se ele não telefonar, provavelmente está à espera que eu diga qualquer coisa, pois o elevador não deu tempo para eu responder, mas, se está interessado, podia ligar para combinar. Já sei, vou ligar a dizer que tenho uma reunião perto do meio dia e que não sei se consigo ir almoçar, qual almoçar qual quê, ele não me convidou para almoçar, vermo-nos ao almoço pode ser vermo-nos no bar, onde costumamos tomar café, vou é dizer-lhe que, que… que se lixe, não vou dizer nada.
A cada retinir do telefone nova esperança e eu a sentir-me cada vez mais ridícula, lembrando-me daquela brincadeira da Achadiça a propósito de uma reunião. Nunca mais é meio-dia. Uma manhã inteira e eu não consegui alinhar duas palavras no raio do memorando. Lá vou ter que levar TPC, logo hoje que dá o Empire Falls. E se for almoçar com ele, provavelmente venho tarde e “sabe deus como” e então é que não vou fazer nada...
- Está aqui um moço da “Pizza na Brasa” com uma pizza p’ra doutora.
Uma pizza para mim! E com um bilhetinho... «Espero-a no jardim. Pode trazer a encomenda por favor, enquanto está quentinha?».
Cabrão. Ai que lá vou eu outra vez.

PS: Detesto pizza.

terça-feira, outubro 17, 2006

IVG

A IVG (Interrupção Voluntária da Gravidez) não é assunto pacífico aqui na capoeira, tanto que fiquei de submeter este texto à aprovação das outras galinhas residentes. Aliás, para ser mais correcta, quando disse que ia escrever sobre este assunto, conhecedoras da minha posição sobre o tema, disseram-me logo “nem penses”. Não porque elas não entendam a minha opinião face ao assunto, mas, essencialmente, porque acordámos que este berloque enveredaria por assuntos ligeiros e de fácil degustação. Como se sabe, não é o caso da IVG. Porém, eu ainda sou a presidente e o assunto legítimo. Abri uma excepção.
É inadmissível um estado que se diz assente no princípio da igualdade de direitos permitir, através da actual legislação, que um acto que resultou do envolvimento efectivo entre um homem e uma mulher só a esta peça contas, expondo-a e humilhando-a, como se todo o processo clandestino a que se sujeitou nalgum vão de escada não fosse por si só suficiente para devastar a sua dignidade. Aliás, sendo os homens responsáveis pela maioria das gravidezes não desejadas, como é possível a sociedade esquecer-se deles e penalizar as mulheres?
A prática de aborto até pode ser discutível do ponto de vista filosófico, mas a experiência diz-nos que recurso a essa prática não pode ser criminalizado. Por mais que custe aos "puristas" e às "puristas" da vida, é à mulher, como ser individual, que compete, com a alegria ou a tristeza que isso implica, decidir do seu corpo e da sua vontade. Compete ao estado, isso sim, garantir os meios para que ela possa planear a sua fertilidade, através da implementação de uma política de formação e prevenção sexuais e, em último caso, assegurar que possa usufruir de condições dignas e cuidados médicos assistidos quando estiver perante uma gravidez não desejada. Condená-la é que nunca.
Aproxima-se o referendo que vai convidar os portugueses e as portuguesas a pronunciarem-se sobre a descriminalização do aborto. Como disse a eurodeputada Britta Thomsen, vamos todos fazer um esforço para mudar esta situação digna da Idade Média que existe em Portugal nesta área.

segunda-feira, outubro 16, 2006

A chave da minha indignação

Desapareceu-me a chave do carro. Do “grilo”, lembram-se? Daquele que trazia um grilo lá dentro quando o comprei. Não, não era um barulho tipo grilo, era mesmo um animalzinho macho a apelar ao acasalamento na cantoria. Este carro é dado a animais. Admito que por lá já passaram alguns, daqueles de duas patas, mas eu estou a referir-me aos outros, de quatro ou mais, como foi o caso do Black, o cão do Sr. Tadeu, o meu mecânico, história que já vos contei há tempos. Mas desta vez o problema não é de fauna. Fiquei somente com um exemplar da chave do carro, situação desaconselhável para quem, estouvada como eu, tudo perde.
Lá fui falar com o Sr. Tadeu que, perante as características da chave, me indicou e aconselhou uma casa da especialidade. Seria melhor ir a esta casa pois se fosse a um representante da marca sair-me-ia mais dispendioso. Lá fui.
Indolente, o funcionário da dita casa preguiçou o afinamento da chave, limando e polindo arestas ao ritmo da minha impaciência, não sem antes me cobrar 50 euros – se não fosse o chip que tem lá dentro - elucidou ele. Paguei resignada. De nada adiantou. Encaixava na ranhura mas recusava-se a dar ordem de ignição ao motor. Depois de muitos ajustes e experimentações o empregado admitiu a sua impotência perante a intransigência da chave. Uma vez que eu estava com pressa que voltasse com mais tempo pois o caso requeria pachorra no acerto do entalhe.
Lá voltei ao outro dia com a paciência requerida. Depois de repetidas tentativas concluiu displicentemente que o problema exigia tecnologia sofisticada para descodificar o código. Voltou com um aparelhómetro parecido com aquele que nos é facultado para pagamento por Multibanco e lá conseguiu vitorioso obter o código que permitiria, segundo ele, clonar a malvada - mas só amanhã - concluiu, para meu desespero.
Apresentei-me no dia seguinte. O funcionário já não era o mesmo. Que sim, que efectivamente tinha o código electrónico que permitia produzir a chave com moderna técnica de lazer, mas isso só era possível na outra casa, do outro lado da cidade. Se lá fosse agora ainda chegaria a tempo, pois só fechavam às sete.
Perdi a compostura. Levantei a voz e a indignação: Mas que falta de consideração e de profissionalismo eram estes. Ando para aqui a caminhar há três dias e ainda sou eu que tenho de despender tempo e gasolina para conseguir um serviço que é da vossa responsabilidade, mais um pouco ainda me punham a burilar a chave! Para além disso, ontem o seu colega disse-me que a chave estava pronta aqui, nesta casa, não em outra. Respondeu-me entediado que se eu quisesse me devolvia o dinheiro. Passei-me. Devolve-me o dinheiro! Devolve-me o dinheiro! É assim que os senhores trabalham? É esta a consideração que os senhores têm para com os clientes, dos quais depende o vosso posto de trabalho. Quem é o dono disto? O dono está na outra casa, informou contrariado. Dê-me a morada se faz favor.
Lá fui a maldizer esta cambada de incompetentes e a formular uma quantidade de observações com as quais brindaria este empresário da treta mais a sua gestão e os seus funcionários.
Talvez alertado pelo empregado para a minha má disposição, o patrão desmanchou-se em desculpas e salamaleques. A chave ficou pronta em cinco minutos, mas não evitou a ira que me tinha invadido. Depois de lhe dar uma descompostura sobre a forma como fui tratada sugeri-lhe: Perdi quatro horas nestas andanças, fiz cerca de 80 quilómetros... tudo somado deve dar mais de 50 euros. Penso que se o senhor me devolver o dinheiro que já entreguei, então sim, ficamos pagos. A senhora está a brincar comigo. Se não está contente com o serviço eu devolvo-lhe o dinheiro mas a chave fica aqui.
Eu sei que sou teimosa e orgulhosa mas tinha que ser muito burra para não me conformar com a situação. Peguei na chave e vim-me embora, não sem antes me permitir deixar no ar aquela ameaça de quem se dá por vencido mas ainda estrebucha: Em breve terá notícias minhas!
Fiquei mesmo irritada com aqueles gajos. Quem as vai ouvir é o Sr. Tadeu, coitado, que não tem culpa nenhuma.

Boas minhocas e livrem-se de entrar nesta casa

quarta-feira, outubro 11, 2006

Crónicas da Galinha Riça - A Ceia Medieval

Que tinha de ser. Desse por onde desse, galos e galinhas deveriam marcar presença na Ceia Medieval e contribuir generosamente para o Coral, não com sacrifícios de canja, cabidela ou fricassé, até porque estes galináceos, por ousadia ou emancipação, estão mais vocacionadas para se servirem do que para serem servidos e já não se prestam a imolações gastronómicas ou a nutrições convencionais. Claro que não abdicariam dos pitéus de sequeiro e da apetecível hortícola constantes da ementa, porém o que efectivamente os aliciava era assistir ao concerto do Coral que, legitimado como digno representante da tradição cultural do nosso Galinheiro, organizou a ceia com o intuito de angariar fundos para levar o nosso canto além mar, à ilha do Faial, num gesto inédito de intercambio musical.
Desconheciam os ilustres participantes que o MRQ (Movimento de Restauração do Quintal), ciente que a luta requer apoios e estes só se alcançam tacitamente, tinha reunido clandestinamente com a direcção do Coral expondo argumentos e vantagens que iam muito para além do motivo invocado nos propósitos da visita.
O presidente do MRQ elucidou: Também o povo do Faial tem um passado histórico de resistência e segregação; Também os sucessivos governantes e políticos em geral não correspondem às expectativas do povo e o desenvolvimento tão apregoado no continente jamais ali ancorou; Para além disso a indústria baleeira extinguiu-se no século XX, à semelhança do acontecido em Canas com minérios, cianamidas e carbonetos, restando aos faialenses, como único meio de subsistência, os postais com a vista da Ilha do Pico, sapo que têm que engolir cada vez que por lá passa um turista. Há lá maior afronta que um turista apontar a máquina fotográfica de costas voltadas para a nossa terra. Já viram o que era Canas estar cheia de postais de Asnelas e os turistas a dizer que a coisa mais bonita que o nosso quintal tem é a vista para o quintal do vizinho. Pois são com algumas destes aspectos que nós nos comparamos e solidarizamos com o Faial e dos quais sentimos obrigação de repudiar publicamente através do apoio possível, que no nosso/vosso caso se prende com a formação de uma delegação especial, constituída por galos e galinhas com o registo de canto mais enérgico e o cacarejar mais estridente, incumbidos de prestar o apoio técnico necessário ao Grupo Coral da Horta para que, como nós, se façam ouvir alto e distintamente no continente. Se considerarmos que aquele território já foi palco de oportunos exílios e local de difícil assédio, configura-se-nos astuciosa esta aliança, no pressuposto do MRQ vir a ser vítima de perseguição ou mesmo de ostracismo, aspecto que no actual cenário político não é de negligenciar.
Estamos conscientes da responsabilidade que vos é atribuída e de quão difícil é a tarefa solicitada, uma vez que, embora a água seja boa condutora do som, a distância é muita e o financiamento da empresa elevado, porém, avaliadas as vantagens que tal projecto representa na conquista deste aliado estratégico, solicitamos o vosso empenho na organização e capitalização da Ceia Medieval. Para o efeito o MRQ disponibilizará as infra estruturas necessárias à realização do banquete e contribuirá com fundos próprios para a deslocação do Coral à Ilha do Faial.
Não constituiu surpresa esta “intromissão” do MRQ nas actividades do Coral, até porque, como já tive oportunidade de relatar, a sua criação foi envolta em segundas intenções, de forma a servir interesses do Movimento em particular e do Galinheiro em geral. Aquiesceu a Direcção do Coral perante a missão sugerida e logo ali se traçaram planos e delinearam prudências, pois o assunto era delicado e recomendava discrição.
Não vislumbraram os convivas da Ceia Medieval as intenções subliminares que presidiam àquela mesa mas, se porventura, um dia, o destino do Faial rumar a outro porto, que é como quem diz, alcançar as revindicações que por hora ainda silencia, isso se deverá provavelmente àquele convívio medieval no pretérito dia 30 de Setembro por terras de Senhorym. Destas subtilezas é muitas vezes a História omissa.
Bons repenicos

segunda-feira, setembro 25, 2006

A resposta

Ex.ma Leitora:

Foi com igual perplexidade que lemos o e-mail que nos dirigiu. Se, por um lado, nos suscitou sorrisos transversais, ao sabor de referências familiares que certamente a leitora, com ou sem adereços, honra na descendência, por outro, desconcertou-nos com a incapacidade de se reconhecer, como mulher e como canense, no formato do nosso berloque.

Só por mera distracção ou manifesta má vontade a prezada leitora poderá aferir que a simbologia usada no “Mulherio” não corresponde integralmente à imagem que de si dá e tão bem expressa no seu e-mail. A César o que é de César, às galinhas o que é das galinhas.

Dado o carácter virtual das três personagens visadas, consideramos natural a suspeição quanto à sua(delas) preferência sexual. É até normal que, dado o carácter confidencial das criadoras, se possa especular relativamente ao verdadeiro género, quer das criadoras, quer das personagens. Todavia, não podemos deixar de lhe recordar que este é um espaço de ampla liberdade onde o único limite é a capacidade inventiva das autoras e a disponibilidade receptiva dos leitores(as), circunstância a que, por certo, a prezada amiga não se opõe, pese embora as considerações pouco abonatórias quanto à alegada usurpação do espírito da "mulher canense" por parte do Mulherio.

Rejeitamos veementemente a sua sugestão de reconsiderar o formato do berloque, por entendermos que a “mulher canense” está muito bem entregue nas mãos destas personagens, enveredem elas por onde decidirem enveredar (as criadores, as personagens ou as mulheres de canas).

Sendo a voz feminina a nossa bandeira e, mesmo que discordante, sempre merecedora de consideração, deixamos-lhe algumas notas passadas que julgamos ter ignorado, mas que nos parecem elucidativas:
Desde as primeiras e “tímidas bicadas” da Achadiça tornou-se evidente a intenção de criar um contraponto feminino à exclusividade masculina que gradava na berloquesfera Canense. A solução encontrada foi criar um espaço provocador que brincasse com a masculinidade dos residentes e abrisse caminhos para uma participação mais alargada das mulheres, inexplicavelmente ausentes nestas paragens. Optámos por um formato assumidamente sexista e pelo simbolismo alegórico de um “Galinheiro” como representação metafórica das mulheres de Canas de Senhorim, solução que nos pareceu adequada, na medida em que nos oferecia uma quantidade de referências para caricaturar a nossa terra e acicatar as nossas gentes. Embora as personagens sejam genuínas e representem as sensibilidades de cada uma de nós, elas perdem-se em intenções secundárias, por vezes extracurriculares, não descurando contudo uma abordagem cuidadosa nos textos publicados e um trato descomplexado, mas elegante, na convivência com os ilustres comentadores.

Foi neste contexto que O Mulherio se assumiu como veículo reivindicativo de pretensões mais ou menos comuns às mulheres em geral e às canenses em particular. Uma brincadeira de três amigas canenses, às quais a leitora, por certo, concederá o direito de cacarejarem como, onde e quando quiserem, independentemente de terem, ou não, assinalável audiência.


As criadoras
Canas de Senhorim, 16 de Setembro de 2006

PS: Estamos a considerar chocar o seu e-mail no berloque. Caso se oponha, agradecemos que manifeste essa intenção. Aproveitamos para lhe solicitar cumulativamente autorização para a publicação do presente e-mail.


sexta-feira, setembro 22, 2006

E-mail de uma leitora

Chegou-nos por e-mail esta missiva(?), digna de ser chocada. Perdoem-nos as e os outros correspondentes, mas não encontrámos nas vossas provocações ou manifestações de carinho motivos de postagem (pelo menos até agora).
Este e-mail foi objecto de resposta, a qual só será publicada no berloque se a destinatária assim autorizar.


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Ex.mas galinhas:

Eu pouco entendo destas coisas de blogues, e ainda menos de berloques, mas fui ‘arrastada’ inadvertidamente para a vossa chocadeira, circunstância que me deixou e deixa absolutamente perplexa.

Primeiro, porque ‘berloques’ me faz lembrar uma tia minha, solteirona por azar, que compensava a falta de obrigações e trabalhos domésticos, enfeitando-se com os mais extravagantes colares, pulseiras e anéis, e pintando-se de todas as cores, chocando a moral local não só pelo avançado das modas, como pelo despropósito do gesto, uma vez que candidatos era o que não havia por lá. «Berloques», dizia o meu pai, referindo-se a tanto enfeite, «só entende de chocalhos, um caso perdido», rematava ele, para quem tudo isso era apenas um modo de disfarçar o fracasso que a remetera para a solidão da auto-satisfação culposa.

Depois, tratando-se de ‘galinhas’, isto é, de mulheres que supostamente brincam com o que efectivamente são, ou se trata de galinhas muito pouco galinhas, e então a anunciada emancipação já a fizeram as meninas, manifestando-a no ostensivo acto de se auto-intitularem como tal; ou então não são galinhas, mas gostavam muito de o ser e, nesse caso, andam a brincar connosco, nós, as verdadeiras galinhas, as galinhas realmente oprimidas.

É claro que acredito na primeira hipótese e que o vosso blogue, além da ironia e da imaginação, também tenha a inteligência de estar ao serviço do equilíbrio da capoeira, se bem que duvide um pouco, desculpem lá a franqueza, do desempenho dos machos, vossos maridos. Então, onde estão os rostos das realmente queixosas? Mas estão perdoadas, uma galinha que se preze não lava roupa suja no adro da igreja e, em última instância, defende sempre a honra do seu macho.

Por outro lado, confesso que senti uma tal cumplicidade entre estas três galinhas que cheguei a colocar a perversa possibilidade de todo este movimento não esconder uma estranha poesia de Lesbos, o que também seria numa forma de libertação, mas não de emancipação. E mais uma vez me lembro da minha tia, cheia de berloques a dar a volta à frustração com uma machona sua amiga, cuja amizade desmedida era a forma de a minha tia sentir que tinha ficado solteira não por lhe terem faltado pretendentes, mas por no fundo nunca ter gostado deles. E se aquilo era só amizade, não sei. Emancipação não era de certeza, senão tê-lo-íamos sabido logo, malgré o escândalo que seria.

Independentemente do que sejam, quem sejam ou como sejam, não vos reconheço qualquer legitimidade para se auto-titularem representantes da mulheres de Canas de Senhorim. Embora vos reconheça inteligência e espirituosidade, não encontro, no vosso berloque, qualquer abordagem pertinente sobre os verdadeiros problemas das mulheres em geral e das canenses em particular. Como canense e mulher sugiro-vos que reconsiderem o formato e o conteúdo do vosso blogue, pois parece-me que desta forma não alcançarão a adesão solicitada, se porventura a pretendem, como insinuam.

Canas de Senhorim, 15 de Setembro de 2006
Uma leitora

quinta-feira, setembro 21, 2006

A Reunião

09h00: Prelecção diapositiva sobre a eficácia do produto e do serviço.

10h30: A reunião prolonga-se enfadonha. Os rabiscos desse enfado já preenchem três páginas do bloco que a secretária solícita disponibilizou.
Nunca mais é meio-dia.

10h45: O fornecedor debita uma anedota seca, a propósito de um cheque atleta(?). Os fornecedores têm sempre uma anedota para contar.
Fogo, nunca mais é meio-dia.

11h00: O director financeiro perde-se em explicações sobre cabimentos de verba e outros exercícios financeiros; o Chefe questiona o consultor jurídico, que neste caso é uma consultora, sobre o enquadramento legal da aquisição …
Porra, nunca mais é meio-dia.

11h45: «Vamos lá assinar o contrato»; «Meus senhores vai ser servido um Porto, à boa maneira portuguesa para selar o acordo». Olha o gajo “meus senhores!”, então, a senhora gaja é excluída? «Doutora, venha também».

Fonix, nunca mais é meio-dia.


segunda-feira, setembro 18, 2006

Crónicas da Galinha Riça - A Luta

Assomaram ali para as bandas da Boiça. Quem os viu pela primeira vez conta que apareceram do nada, ou por outras palavras, vindos do horizonte da história, envoltos numa imagem difusa por efeito dos vapores solares reflectidos pela terra quente do meio-dia. Silhuetas indistintas ao longe, foram arrumando formas na aproximação ao casario fronteiriço do Casal.
A moça, que bordava o enxoval, apontou o dedal na direcção dos forasteiros, não porque fosse raro ali passarem desconhecidos, pois ela bem sabia que por este caminho lhe chegaria amor prometido, também ele desconhecido por agora, mas certo na reza que fez a São Caetano, «Ó meu rico S. Caetano traz-me homem honrado, pode ser este ano que não dei por ele ano passado». Mas, o que prendeu o olhar da moça e lhe semi-cerrou o sobrolho foi o aspecto invulgar daqueles dois viajantes: À frente, montado num cavalo parco de carnes e lento no andar, um cavaleiro fidalgo sacudia a poeira acumulada da armadura que lhe envolvia os ombros. Desdenhoso nos seus trajes medievais, empunhava verticalmente na mão direita uma lança de dimensões desproporcionais; Na sua mão esquerda um escudo metálico circular, na cabeça um elmo ligeiramente amolgado e à ilharga uma espada embainhada. Na sua peugada, vagaroso, um burrico indolente carregava na albarda um homem anafado e andrajoso. Dos flancos do animal pendiam vários apetrechos de viagem que chocalhavam a cada passo do asno.
O fidalgo estacou o ginete bem em frente da varanda onde a moça, ainda incrédula do que presenciava, acertava o raciocínio buscando explicação para aquele quadro burlesco. O cavaleiro, com gestos cerimoniosos, tirou o elmo da cabeça e dobrando ligeiramente o corpo, fez uma vénia e apresentou-se:
- Chamo-me Dom Quixote de La Mancha. Cavaleiro Andante. Este, que me acompanha é o meu fiel escudeiro Sancho Pança.
A rapariga, embora mais dada a alinhavos de enxoval, não descurava literaturas seiscentistas, pelo que, reconhecendo nos interlocutores as personagens de Cervantes, tomou ironicamente as apresentações.
- Eu sou a Dulce – brincou ela na alusão propositada ao nome da bela Dulcineia.
- Dulce! Formosa donzela, que seja mil vezes amaldiçoado o ignóbil que vos impôs tão sórdido destino. Não desespereis que já me apronto a libertar-vos. Dizei-me quem vos mantém cativa por detrás dessas grades que escondem a vossa beleza e olvidam a vossa virtude.
Esta Dulce de ocasião, julgando-se confrontada com brincadeira de galanteador folião, não desarmou.
- Bem-vindo sejas e que os caminhos que percorreste não tenham sido em vão. Quem me tem presa também agrilhoa este povoado de Canas de Senhorim. Libertando-o, libertar-me-ás igualmente. Para isso terás que derrotar os Senhores do Reino de Asnelas.
O até agora silencioso escudeiro Sancho Pança esboçou um gesto de impaciência. No seu íntimo já antevia novas batalhas e fantasiosas demandas. Cansado e saudoso de temperos e favores familiares tentou chamar o seu amo à razão:
- Senhor, bem sabeis que vos tenho sido fiel nas intenções e digno nos propósitos, que vos tenho protegido e servido nos maus momentos, que dos bons não tenho memória, mas deixai que vos diga que ao intento a que vos propões não vislumbro fama nem glória.
- Como ousais destinar a batalha sem a travar! Rouba-te a barriga a coragem e esquenta-te o sol a moleirinha. Dizei-me Dulce, que caminho devo tomar para sitiar os Senhores de Asnelas.
A rapariga, animada pela gentileza e já insegura quanto à falta de credibilidade que os visitantes lhe tinham inspirado, decidiu sugerir-lhes o centro da Vila e que por lá se esclarecessem.
- Não fica a mais de uma légua para norte senhor. Porém mais vale que tomeis o centro da Vila para aí dar conta da façanha e angariardes reforços – recomendou seriamente, num esforço para dominar o nervoso miudinho que lhe revelava incertezas contidas.
- Assim farei. Aguardai-nos no vosso recato e não temeis por vós, que me hei-de apressar a resgatar-vos.
Quis a autora desta crónica que neste dia, as ruas de Canas de Senhorim estivessem animadas pela Feira Medieval. D. Quixote e o seu companheiro, julgados precipitadamente como figurantes, foram recebidos com palmas e manifestações de regozijo. Mas a figuração não se quedava pelo aspecto. Sancho Pança, a mando do amo, calcorreou as ruas do recinto anunciando ao que vinham e informando que para mais esclarecimentos se dirigissem ao Pelourinho, onde D. Quixote, cavaleiro de La Mancha, aguardava aqueles que, por amor à liberdade e à justiça, estariam dispostos a combater sob as suas ordens os Senhores de Asnelas. Logo se juntou uma multidão na crença de que este ano o Grupo de Teatro Pais Miranda se tinha esmerado nas artes do teatro de rua.
De cima do cavalo Rocinante, D. Quixote anunciava de armas em punho o fim da escravidão e do servilismo, assim se juntassem a ele na incursão que pretendia levar a cabo a terras de Asnelas.
- Não temeis, pois a razão está convosco e é meu ensejo restituir-vos a dignidade e os domínios dos vossos antepassados, infamemente usurpados pelos Senhores de Asnelas. Despeçam-se das vossas famílias e sigam-me.
Dito isto, tocou o cavalo Rua do Paço acima, seguido pelo aio Sancho Pança.
Entreolhou-se a multidão. A princípio, alguns figurantes, protagonizaram a iniciativa e juntaram-se timidamente ao cavaleiro, depois, como que por simpatia colectiva, a coluna dos sitiantes engrossou efusivamente. Malabaristas, saltimbancos, dançarinas, jograis, tasqueiros, mendigos, indigentes, acorrentados, leprosos, carrascos e condenados, bruxas e curandeiros, domadores de feras, caretos e andarilhos, vendedores e vendedeiras, visitantes e visitados, todos em alegre algazarra, coloriram o compacto cortejo que se esvaneceu mais acima, na curva do Frazão, rematado à retaguarda por catraios curiosos e gentios pouco esclarecidos.
Desta trupe entusiasta e das suas aventuras por terras de Asnelas e da capital do Reino, já deu conta Cervantes. Vitórias, derrotas, traições, deserções, alegrias e tristezas foram perpetuando o nosso líder D. Quixote que pelejou estoicamente, nunca abdicando dos ideais cavalheirescos do amor, da paz e da justiça.
O ideário picaresco de libertação que D. Quixote protagonizou por terras de Canas de Senhorim, fidelizou a vontade colectiva no propósito independentista que ainda hoje habita o coração dos canenses. Foram lançadas à terra as sementes do idealismo, promissoras da transformação do real. O alcance da colheita competirá às gerações futuras assegurar. Foi com esta convicção que D. Quixote, um dia, após muita insistência do seu escudeiro Sancho Pança, que na sua versão realista dos acontecimentos já tinha previsto quão utópicos eram os ideais do seu amo e do exército mafarrico que o acompanhava, apontou o cavalo Rocinante à Rua do Casal. Foi a última vez que os viram. Diz, quem viu, que na garupa do cavalo de D. Quixote ia uma moça vestida de noiva.

Bons repenicos

domingo, setembro 17, 2006

Historieta

As boas raparigas vão para o céu, as outras para onde quiserem


Acordei tarde, enxovalhada. A cabeça latejava na urgência do benuron. Malditas ressacas, pensei, enquanto tentava reconstituir as “brancas” da noite anterior. O quarto tresandava a exsudações etílicas e aromas corporais desaconselháveis. Pressenti que algo estava errado e num repente virei-me na cama. Merda, merda, merda! Um volume sob o lençol deixava entrever uns ombros peludos e musculados e um braço, igualmente cabeludo, espreguiçava intenções sobre a minha anca. Ressonava ao ritmo da minha angústia anunciada.
Senti-me. Pelo menos não estava nua, bom sinal. Mas o despertar lento próprio destes acordares trouxe-me à memória odores conhecidos, gestos e refregas antigas, reconciliações do corpo, desejos e rejeições familiares. Eu bem conhecia aquela cabeleira que amachucava a minha almofada. Sim minha, porque o egoísta apropriou-se dela e eu dormi toda torcida, como retorcida me sinto agora contemplando o infeliz despojo. Nem mais nem menos, o meu ex-marido devolvido à procedência pela própria remetente. Resfolgando consolado na minha cama. Merda, merda, grande merda!
Como se não tivesse bastado o calvário das traições, das discussões, do amor esvaziado; Como se não tivesse já passado pelo purgatório do processo litigioso de separação, com a nossa vida a ser dissecada por meirinhos escrupulosos e testemunhas de coisa nenhuma, pela difícil e patética negociação do carro, da casa e do recheio. Como se tudo isso não fosse já por si um tormento, revejo-me agora, passados quatro anos, repetindo intimidades de leito, num gesto irreversível de insanidade física e mental.
E agora? Como vou enfrentar este satanás rabudo que instalou o inferno na minha vida e num deslumbre de insensatez, lhe permiti o corpo depositando-o madrugada dentro, por inteiro, dentro de mim. Eu, que já o tinha erradicado a ferros da pele, da cabeça, das mãos, da boca, dos olhos, das entranhas. Que inferno este que me seduz, atrai, queima e condena. Um verdadeiro inferno.

B~~

sexta-feira, setembro 15, 2006

Balanço

Ainda não reunimos todos os dados para avaliarmos correctamente os indícios positivos que nos têm chegado a propósito da crescente satisfação do mulherio canense. Aparentemente, este Verão apresenta resultados acima das previsões mais optimistas. Os números apontam para um acréscimo de meio ponto em média relativamente ao mesmo período do ano transacto, isto é, se no ano passado, em igual período, o desempenho dos machos se cifrava em duas quecas por semana, este ano aumentou para duas e meia.
Naturalmente que um acréscimo de meia queca pode ser contraproducente, isto porque, como foi comentado pelas fieis depositárias destes números, antes nenhuma que meia, penduradas já ficamos nós, amiúde, nas supostamente completas; meias só para as pernas, que isto de quecas não permite casas decimais. Queremos a unidade por inteirinho e cumprida até ao fim, ao nosso fim, pois, como bem sabemos, muitas vezes a unidade deles fica muito aquém da nossa e dessas pressas não dá conta a estatística.
Admitimos que neste particular, quantidade não é sinónimo de qualidade. Que porventura estas estatísticas não traduzem a verdadeira prestação masculina pois, para usar uma linguagem que lhes é acessível, nem sempre a equipa que apresenta melhor futebol no terreno marca golos e, frequentemente, muitos golos são marcados sem actuação assinalável? No entanto, objectivamente, a prática do exercício reclamado aumentou, o que não deixa de ser interessante. Fosse por inerência da estação, propícia à fogosidade e ao lazer, fosse pelo período de defeso que a luta pelo concelho atravessa, fosse por iniciativa de forasteiros prestáveis, fosse resultado de deambulações amorosas à beira-mar ou por queixas e protestos vindas a público na voz do MRMCS, apraz-nos registar a diligência dos homens e a crescente satisfação das mulheres canenses. Boas bicadas.

A presidente do MRMCS(Movimento Reivindicativo do Mulherio de Canas de Senhorim)

Achadiça

quinta-feira, setembro 07, 2006

De volta

Tenho saudades daquelas bolas de sardinha que a minha mãe, em dia de forno comunitário, trazia ainda quentes para casa. A côdea estaladiça e generosa, cedia a cada dentada o acesso à massa de milho que, impregnada pela gordura das sardinhas, me estimulava a avidez do paladar.
Depois, com cuidado redobrado, não fossem as sardinhas escaparem-se da massa, aplicava-me em malabarismos de língua para evitar que molho e sardinhas se alojassem no vestido, descuidos que merendas anteriores já me tinham custado raspanetes dispensáveis. Mas o processo não era fácil. A bola fervia no seu interior e a sofreguidão com que me entregava àquele pecado queimava-me invariavelmente lábios, língua, céu-da-boca e outros interstícios vulneráveis.
Lembro-me que o meu pai, rendido pelos encantos da sua “piquena” nestas volúpias da gula, me recomendava carinhosamente outras maneiras. Mas eu bem o via a reprimir gargalhadas, deliciado com as minhas travessuras e os meus palavrões permitidos. Algo como chiça, pôcha que tá quente!
Com o passar do tempo os fornos a lenha deram lugar a boutiques de pão e a outros dissabores. A bola de sardinha já só me chega envolta em memórias de infância, vagamente misturada com o aroma a água-de-colónia do meu pai. O meu pai que não viu a sua “piquena” crescer. O meu pai que deixou indelével a minha vontade de amar todos os homens como dele se tratassem. O meu pai continuamente colado à sua menina, cúmplice das suas fantasias e gulodices, envolto no sabor de uma bola de sardinhas.
B~~