sábado, março 22, 2008

Ainda os professores...

A nossa amiga Rosalinda, a quem aproveito para agradecer o excelente texto que nos enviou, trouxe o assunto dos professores à baila, tema que já por algumas vezes me tinha ocorrido abordar, mas, por me parecer excessivamente complexo para tratar neste formato, não o fiz.
Depois de ver o vídeo que anda por aí acerca do comportamento de uma aluna e respectiva turma para com a professora, filme que parece estar a gerar grande indignação, como se não se soubesse da frequência destas situações e outras piores dentro das salas de aula (e fora delas), como se fosse preciso o registo-vídeo para convencer os “São Tomés” da dificuldade com que os professores se debatem diariamente, perante a permissividade e impunidade do sistema, decidi escrever sobre o assunto. Não vou abordar a questão da disciplina e da falta de autoridade que inquinam o sistema, isso levar-me-ia muito para além do que um post alcança, vou tão somente realçar alguns aspectos legislativos com que este governo decidiu brindar os professores, e faço-o na esperança que, dito de uma forma simples, quem ler este artigo perceba o que está em causa.
Na sequência de um discurso político que elegeu a função pública como monstro a abater, a classe dos professores foi igualmente arrastada pela lama e sobre eles recaiu o anátema da culpabilidade. Se o ensino vai mal a culpa é dos professores, são uma classe privilegiada, não fazem nada e ganham bem, ouve-se recorrentemente nos cafés.
Mais do que todos os meandros deste conflito entre a classe dos professores e governo, está a mensagem que ficou no ar para a opinião pública, a ideia que o fracasso do ensino em Portugal era da responsabilidade directa e indirecta dos professores. E o governo não parou para pensar, centrou quase toda a política do governo para a educação, em matéria legislativa, na carreira e no estatuto da classe docente, dando a entender que era ali que estava o cerne da questão.
Todos sabemos, à excepção da ME, pelos vistos, que os problemas do ensino são conjunturais, resultado de anos e anos de experiências ao sabor dos diversos governos que foram incapazes de pensar um projecto de educação estável e bem definido. A política de educação requer um pacto de regime, que estabeleça o modelo adequado e que, independentemente de quem estiver no poder, se comprometa a cumpri-lo, não é com remendos nem com sucessivas alterações, muitas delas contraditórias e sem nexo, de forma precipitada e descontinuada, que se criam os pressupostos curriculares e pedagógicos necessários para que o tempo verifique o sucesso da sua aplicação.
Mas com isto não se preocupa a ME. Para se afirmar, direccionou de forma arrogante, arbitrária e economicista as suas reformas quase exclusivamente para a carreira dos professores, como se neles residisse o problema dos números que nos envergonham perante a CE.
Vejamos: A avaliação do desempenho é uma treta burocrática, ninguém vai ser melhor ou pior professor por causa da sua implementação. O que se verifica é que, por força do limite de quotas fixado para reconhecimento do mérito, o processo de avaliação vai condicionar a progressão na carreira, isto é( para quem não está mto por dentro do sistema), imaginem que há 100 professores numa escola, uma vez que a quota da menção de avaliação mais alta está limitada a 5%, só 5 professores podem obter essa avaliação, se houver 10 que efectivamente sejam excelentes, lá vai o avaliador ter que fazer malabarismos na ficha de avaliação para que cinco desses professores sejam excluídos do excelente. Ora isto vai ter repercussões na progressão remuneratória do professor, pois a alteração de posicionamento remuneratório está dependente da avaliação do desempenho. O que este sistema faz é determinar que à partida só 5% de professores podem ser excelentes e 20% relevantes, todo o resto é adequado ou inadequado, agora desenrasquem-se, metam a malta nestes números e ponto final. Para isto não era preciso aquela grelha diabólica, aliás a famigerada grelha só vem de uma forma atabalhoada tentar credibilizar uma avaliação que à partida já está condicionada pelas quotas. Conclusão, podes ser excelente mas para ti não há dinheiro. E os tão falados prémios de desempenho (desconheço se este ano os professores são abrangidos) alinham pela mesma bitola, limitados este ano a 5% dos funcionários públicos, não basta ser excelente, é preciso sê-lo e caber dentro da quota. Isto é economicismo puro, disfarçado pela suposta avaliação do mérito.
Quanto à categoria de Professor Titular é outra vergonha, e já nem falo nos critérios relativos e injustos do concurso, isso daria pano para mangas, limito-me a referir o corte abrupto que tal categoria veio introduzir nas expectativas de progressão da carreira. Imaginem um professor no oitavo escalão da categoria (em circunstâncias normais atinge-se esta posição por volta dos quarenta anos), longe da reforma portanto, que como se sabe também foi adiada. No sistema antigo, se a avaliação fosse favorável e não houvesse outro qualquer impedimento o professor ainda tinha mais duas posições remuneratórias que lhe serviriam de motivação, se não estou em erro, quatro anos para o nono escalão e mais cinco para o décimo, portanto lá para os cinquenta , cinquenta e cinco chegaria ao topo da carreira. O novo sistema veio introduzir a categoria de Titular que arrebanha as últimas duas posições remuneratórias. Assim, quem estava no oitavo, nono e 10 escalões poderia concorrer a Titular, segundo uma fórmula cujos critérios foram mais que injustos (o tal problema das faltas por doença serem consideradas e outros cuja análise não cabe aqui). Com este método quase todas as vagas de Titular foram ocupadas pelos professores detentores do 9º e 10º escalões, acabando as residuais por serem ocupadas por alguns, muito poucos, detentores do 8º. Ora, para aqueles que não obtiveram vaga a sua escala remuneratória esgota-se naquele escalão, o 8º. Congelou-se qualquer possibilidade de progressão. Uma vez que de acordo com a novo estatuto de aposentação a data de reforma aponta para os 65 anos, é fácil prever que os actuais titulares (entre os cinquenta e os sessenta anos) só abrirão vaga entre cinco e quinze anos, isto na melhor das hipóteses, porque se a faixa etária do corpo docente da escola for mais baixa, nem para as calendas gregas. Mas isto ainda é mais complexo, as vagas são afectadas à especialidade (agrupamento disciplinar), o que pode estagnar indeterminadamente a evolução na carreira de um professor que leccione Português, e permitir a evolução de um de outro agrupamento, mesmo com menos tempo de serviço, isto para não falar de níveis de qualificação e outras apetências, que dada a sua subjectividade nem ouso falar, pois isso levava-nos a reflectir sobre as relações inter-pares e outros mecanismos perigosos para distinguir aquilo que não é distinguível. Para além disto, este processo, no futuro, gera uma reacção em cadeia, os professores evoluem com mais ou menos sobressaltos até ao oitavo escalão e ali caducam afunilados a acenarem aos seus pares Titulares, aguardando que algum tenha o bom senso de morrer rapidamente, perdoem-me a humor-negro.
Claro que esta alteração não concorre em nada para a melhoria do ensino, chavão que a ME tanta gosta de usar, muito pelo contrário, desmotiva qualquer alma, por mais aplicada que seja ao exercício da sua profissão, mas, feitas as contas, poupa uns milhões ao estado, sonegados vergonhosamente aos professores por artifícios legislativos deliberadamente pensados para esse efeito e ao arrepio de qualquer política efectivamente pedagógica.
A criação da categoria de Titular, embora sirva o propósito, não foi realmente pensada para qualificar os professores na gestão e coordenação pedagógica das escolas, foi, isso sim, uma maneira encapotada de economicismo, fazendo estagnar a carreira de um professor numa altura (por volta dos 40 anos) em que, por norma, qualquer profissional com vinte anos de experiência e outros tantos por cumprir sente necessidade de ver reconhecido não só o valor do seu percurso, como também garantidas as expectativas futuras de progressão na carreira.
A ME não tem qualquer ideia nem rumo para o ensino em Portugal, limita-se a alinhar na política mesquinha do governo, protagonizada pelo PM, que elegeu os funcionários públicos em geral e os professores em particular como “persona não grata”, causa de todos os males do país. Não há nada como arranjar um bode expiatório para que a sociedade exorcize o mau estar que lhe vai na alma e para disfarçar a incompetência política que grassa no sector da educação.

quarta-feira, março 19, 2008

Sou professor: tirem-me daqui!

Sou professora há tempo suficiente para já estar no antigo oitavo escalão da carreira quando foram decretados os célebres congelamentos que aceitámos contrafeitos, mas justificados na nossa boa intenção do bem comum e na retórica propagandística do nosso primeiro-ministro.

E quando veio o novo estatuto não se fez grande alarido. Além das institucionais vozes de protesto, a que ninguém liga, desgastadas que estão pelo ritual político-partidário e pelo profissionalismo sindical, ouviam-se na sala de professores os contestatários habituais com os quais todos concordávamos pontualmente mas nunca ao ponto de pormos em causa o facto de sermos avaliados.

Nem mesmo a sinistra figura do professor titular nos assustou, convencidos que estávamos que a credibilização do ensino em Portugal passava pela criação de corpos estáveis, e devidamente qualificados, na gestão e coordenação pedagógica das escolas. Nem tão pouco, ficámos em pânico quando percebemos que tínhamos que trabalhar durante muito mais anos para ganhar menos, arrastados que íamos na necessidade urgente do sacrifício geral, em particular da função pública, para bem da salvação económica do país e do bem-estar da nossa velhice.

Mas quando vimos que o concurso a professor titular introduzia as maiores injustiças em termos de reconhecimento do nosso trabalho e que, em vez de assegurar a qualidade dos quadros de gestão pedagógica das escolas, apenas introduzia diferenças arbitrárias entre colegas, sobretudo se forem de escolas diferentes, tendo como efeito prático tão-somente reduzir as despesas do Estado, sentimo-nos malogrados na nossa boa fé.

Quando nos vimos feitos os bodes expiatórios da má qualidade do ensino no nosso país e confrontados com um modelo de avaliação que a todos queria passar um atestado de incompetência, sentimo-nos revoltados.

Sentimo-nos revoltados porque fomos nós que, bem ou mal, fomos todos os dias para dentro das salas de aula e assegurámos ao longo destes anos o ensino em Portugal, num ambiente de completa deriva legislativa e completo desgoverno educativo. Somos nós que damos a cara e nos responsabilizamos diariamente por um ensino que nunca teve um rosto coerente, que tem andado às apalpadelas desde que se democratizou à pressa.

Somos acusados, pelo sistema que nos formou, por nos termos visto em papos de aranha para interpretar toneladas de despachos contraditórios, por termos tido de seguir directrizes vagas e incoerentes, por termos tido de pôr em prática currículos cujos conteúdos programáticos são incompatíveis com os objectivos pedagógicos e com as finalidades do ensino. Somos responsabilizados pelo insucesso e pelo abandono escolar como se a degradação geral do tecido social não tivesse nada a ver com isso. Somos publicamente denegridos pelo mau resultado dos números quando isso é apenas um dos indicadores do fraco nível do desenvolvimento global do país.

Os milhares de professores que no dia 8 de Março se manifestaram fizeram-no porque se sentiram enganados pelo Sr. Primeiro-ministro, insultados pela Sra. Ministra da Educação, ludibriados pelos pais que delegam nos professores a responsabilidade exclusiva pela educação dos seus filhos, difamados pela opinião pública invejosa dos privilégios mas ignorante do seu preço, esmagados contra um tecto de carreira cada vez mais baixo e assustador, sufocados na heresia dos relatórios descritivos, dos planos de recuperação, das justificações e das fichas disto e daquilo, paralisados nas aplicações informáticas que o Ministério manda ensaiar na escola e que engata todo o trabalho já feito e por outros tantos papéis aos quadradinhos que cada vez mais insistem em tornar-nos simples burocratas. Tudo isto desviando os professores da sua verdadeira função – o acto de ensinar.

Os professores vieram finalmente para a rua para fazer lembrar ao nosso Primeiro-Ministro, à nossa Ministra da Educação e ao país em geral que podemos não ser os professores ideais mas somos os professores reais, aqueles sem os quais, quer queiram quer não, não será levada a cabo nenhuma reforma no ensino.

E somos competentes, tão competentes que não saímos a espectáculo público por razões de gratuito descontentamento, tão competentes que fizemos questão de dizer que sabemos quando nos estão a atirar areia para os olhos, tão competentes que percebemos aquilo que o Sr. Primeiro-ministro parece não ter percebido – não é lançando abruptamente a grande maioria dos professores do nosso país (os que estão mais ou menos a meio da carreira) para o fim da sua progressão na carreira, que encontrará a energia positiva necessária para melhorar o seu desempenho.

Esta maioria de professores sabe muito bem dar aulas e não tem medo de ser avaliada, não terão de fazer senão aquilo que sempre têm feito para defender a sua categoria. E, uma vez que lhes rouba todas as expectativas de promoção, também não terão de fazer muito mais nos outros tantos anos que ainda permanecerão no ensino. O efeito será, no mínimo, paralisante, Sr. Primeiro-ministro. Afinal não se distinguirá muito do actual estado de coisas, só que ainda mais triste.

E é escusado acenar-nos com a outra carreira, a de titular, pois como todo o país já percebeu, nem o Sr. Primeiro-ministro acredita nisso.[Rosalinda]

quarta-feira, março 12, 2008

sem nome

Arrecadou calmamente a angústia. Estranhou a serenidade com que o conseguiu, tanto melhor, afinal alguma coisa aprendemos nas andanças desta vida.
Tirou a pintura e encheu o bidé com água fria. Doíam-lhe as entranhas, se calhar estava na altura de tomar outro analgésico. Apetecia-lhe beber qualquer coisa forte, alcoólica, mas o antibiótico desaconselhava essa possibilidade.
Lavou-se cuidadosamente. A água transparente descansou-a. Tudo bem, não há indícios alarmantes. Foi ao frigorífico, encheu um saco com gelo e deitou-se no sofá tão comodamente quanto possível. Colocou o saco na barriga e olhou o relógio, quinze minutos, depois tinha que o tirar, aguardar outros quinze e voltar a pôr. Ligou a televisão por ligar, pegou num livro mas logo desistiu, não conseguia concentrar-se em nada. Ela bem sabia o porquê desta dificuldade, ele havia de telefonar a perguntar se tudo tinha corrido bem e ela haveria de dizer que sim. Mas lá no fundo, lá no fundo macerado do seu corpo, morava o vazio. Tão irreversível como despojado. Ele dir-lhe-ia, vou já ter contigo, e ela, não, não venhas, hoje é um dia de solidão absoluta.