segunda-feira, junho 26, 2006

Portugal versus Holanda

Ontem prometi a mim própria sentar-me em frente à televisão e ver atentamente o jogo de futebol que opôs a Holanda a Portugal. A minha perspectiva de um jogo de futebol é muito pouco racional pois não sou dotada de conhecimentos técnicos nem acompanho os bastidores destes teatros desportivos para poder avaliar estratégias ou outros factores que os comentadores usualmente enfatizam. Digo enfatizam porque, após escutar alguns supostos entendidos na matéria, entendi que a imponderabilidade do futebol permite todo o tipo de especulação e, seja um catedrático desportivo ou uma ignorante como eu, tudo nos será permitido e desculpado dada a impossibilidade de qualquer exercício científico de compromisso opinativo. Tudo é possível e nada garantido.
Mas tal facto não se esgota nos meandros da análise. As próprias regras desta prática desportiva, para uma leiga como eu ou para um perito no assunto, são a maior parte das vezes ininteligíveis e de uma relatividade que, frequentemente, transporta a apreciação para a dimensão do absurdo. Senão vejamos:
- Bola na mão ou mão na bola! Vi um dos jogadores da Holanda ajeitar a bola com a mão. O árbitro assinalou falta mas não mostrou amarelo; o Costinha pôs a mão à bola e toma lá um amarelo!
- Os tais fora de jogo, que eu já vou percebendo, mas que, em determinadas circunstâncias, são de uma dificuldade de avaliação desumana. Nem uma águia, no seu melhor golpe de visão, conseguiria aquilatar tal regra.
- O Cristiano Ronaldo e um atacante da Holanda foram literalmente agredidos. Então as regras não ditam expulsão nestes casos? No caso do atacante da Holanda, e ainda bem para nós, o lance foi totalmente ignorado! Até daria penalty. No caso do agressor do Cristiano, se comparado com o amarelo do Deco, então a falta de equidade é abissal.
- Não consegui perceber a lógica dos cartões amarelos. Ora eram ignorados ora mostrados displicentemente. O Deco levou um amarelo porquê? O que é que me escapou! Foi por agarrar a bola com a mão! Bem, se foi, não ficava nenhum jogador em campo.
- Então quando um jogador agarra outro pela camisola ou pelo braço não é falta!!! Vi, especialmente nos cantos os jogadores puxarem-se, agarrarem-se, mas nem árbitros nem comentadores tomarem posição. Como se fosse normal e permitido!!! Será que é?
- Então e a tal regra do fair-play! Com tanta regra não poderiam criar uma que evitasse atropelos ao fair-play. Se o jogador não fosse abalroado por um dos nossos e marcasse golo seria invalidado? Não me parece. E se isso acontecesse numa final e fosse determinante para apurar o campeão. Ficava a festa estragada por falta de fair-play. Seria uma vergonha para o campeão mas não me parece que influenciasse a consagração.
O que estará mal neste jogo. A flexibilidade das regras ou a incapacidade humana para as fazer cumprir. Claro que qualquer avaliação é subjectiva, mas esta reveste-se de tantas incongruências que só agora percebi o porquê de tanta confusão no mundo do futebol e dos comportamentos tresloucados de agentes e adeptos. Se a isso somarmos suspeições sobre a idoneidade dos árbitros, então a tal magia que é atribuída a este desporto ganha um colorido bem mais tenebroso, mais próximo da magia-negra que da fantasia que os artistas da bola ainda imprimem a este espectáculo.
Perdoem-me se estou a dizer disparates. Porém, sobre esta matéria já percebi que tudo é permitido e, como tal, aqui fica a minha primeira análise (espero que última) a um jogo de futebol.
Viva Portugal.

Bons repenicos

sexta-feira, junho 23, 2006

Portem-se bem!

O destino

Estava eu no meu sossego, bebericando a biquita do meio-dia, quando me apercebi das dificuldades do zé joão em entender um cliente que esbracejava gestos amplos ao balcão entrecortados com expressões em inglês e espanhol(?). Disponibilizei-me para ajudar.
Palavra puxa palavra lá fui desentorpecendo o meu pobre inglês, arrastado entre hesitações e atropelos e pacientemente descodificado pelo meu interlocutor. Sorria elegantemente perante os meus sorrys e outras bengalas onde eu apoiava a minha insegurança linguística e a conversa lá foi fluindo. Afinal era americano.
Nada de coffees, cakes ou beers. O que ele pretendia era, imaginem, saber que transporte devia utilizar para ir à serra, que curiosamente naquele dia, resplandecia límpida e atractiva lá no horizonte (palavras dele). Com alguma dificuldade expliquei-lhe que só de táxi ou de carro seria possível ir e vir numa tarde à serra. Olhou-me incrédulo mas lá tentei fazê-lo entender que esse género de programas turísticos era assegurado pelos hotéis e outras entidades vocacionadas para o efeito. Lamentou, pois não gostava dessas excursões. Limitavam-lhe os movimentos e as intenções. Preferia misturar-se com as pessoas e escolher os seus próprios percursos.
Depois fez elogiosas referências a portugal, a canas, à paisagem e ao clima e, insinuoso, indagou da minha disponibilidade para ir à serra. Que pagava as despesas. Declinei educadamente o convite argumentando que tinha que ir trabalhar e sai apressadamente para evitar cair na tendência hospitaleira que nos é tão característica. Para além disso pensei – o que tu queres sei eu! Sorri para os meus botões ocorrendo-me o absurdo sketch dos gato fedorento e não me lembrei mais do assunto.
Gosto de viajar de comboio. Quando vou a lisboa ou ao porto geralmente vou no intercidades, até porque não sei conduzir nesses centros urbanos. Costumo viajar num lugar individual em 1ª classe. Opto por um lugar individual pois já me aconteceu ter que suportar algumas abordagens inusitadas. Embora naquele dia estivessem esgotados tranquilizei ao constatar que não tinha ninguém ao meu lado. Abri um livro e alheei-me da viagem. Assim foi até coimbra.
Vi-o mal assomou o compartimento de entrada da carruagem. O turista americano que queria ir à serra. Encolhi-me no banco, invocando os santinhos todos para que não me reconhecesse, mas a inevitabilidade do destino ditou que o americano me estivesse reservado. Alinhámos sorrisos e surpresas mútuas. Falámos da serra que acabou por visitar; falámos do hotel da urgeiriça, dos eua, de portugal, de canas, de nelas, do terrorismo, do bush…quando dei conta estava em Lisboa, ansiosa por levá-lo a comer umas sardinhas a um bairro típico e a beber um bucelas fresquinho.
Telefonei à M. que me aguardava e lá fui, hospitaleira em terra alheia, cumprir em lisboa o papel de cicerone que me estava destinado em canas.
Quem sabe se para o ano vou aos estados unidos?

B:»

terça-feira, junho 20, 2006

Crónicas da Galinha Riça - Enquanto Canto

Já todos são conhecedores das desventuras d’O Pavão, adúltero político por força de sigiloso amor que nutria pelas nossas conterrâneas.
Porém, à altura, os intelectuais do MRQ (Movimento de Restauração do Quintal), desconhecedores daquele amor republicano e desinformados do verdadeiro motivo pelo qual o presidente se revelou avesso à causa reivindicada, logo se aprumaram em análise exaustiva das diversas possibilidades que levaram ao incumprimento do desiderato.
Reuniram documentação, solicitaram aconselhamento protocolar, visionaram reportagens televisivas e vídeos caseiros. Após aturada avaliação comportamental dos intervenientes no processo reivindicativo, constataram com pesar que as manifestações, se do ponto de vista da organização se apresentavam eficazes, já quanto ao alarido e respectivas cânticos acessórios não reflectiam o acerto e afinação necessários ao objectivo. Até aconteceu, que em dado momento, por falta de comunicação ou de ouvido musical, se subverteu o Hino Nacional com referências musicais menos próprias, tudo enrodilhado numa cacofonia desconcertante.
Lamentável! Foi a expressão usada por aquele grupo de trabalho, encarregado de avaliar o passado e melhorar as prestações futuras do Movimento no terreno. Aquele sarrabulho, inspirado por hábitos ancestrais de despiques carnavalescos, mais próprio para consumo interno do que para exportação, por certo não se adequava à sensibilidade a ao gosto clássico do presidente e do seu séquito.
Pensando terem encontrado o cerne do problema, de imediato foram sugeridas soluções para obviar o desacerto coral evidenciado nas gravações. Dissecaram-se os registos sonoros e isolaram-se digitalmente em pistas individuais, qualificaram-se e quantificaram-se os géneros, apuraram-se os naipes vocais. Tudo com a mais alta tecnologia disponível. Alguns elementos mais ortodoxos da ala intelectual do Movimento ainda protestaram que isso de castratos e falsetes lhes parecia menos próprio aos intentos de um Movimento que se requeria viril e frontal. Mas logo foram elucidados que tais amputações e disfarces poderiam ser assumidos por elementos femininos, pois os tempos eram outros e até as mulheres já podiam cantar de galo… mas fininho! Aquiesceram os indecisos e firmou-se a ideia de constituir um grupo à capella, que servia perfeitamente as intenções do MRQ como referência e indicador da necessária afinação vocal das massas.
Com a mestria própria dos grandes mentores, a ala intelectual do Movimento, carenciada de vocação para o efeito, solicitou apoio a alguns elementos proeminentes d’ O Galinheiro que, solidários, diligenciaram sub-repticiamente e com a celeridade requerida o recrutamento de baixos, barítonos, tenores, contraltos e sopranos, todos e todas previamente seleccionados pela agudeza tecnológica atrás descrita e ignorantes da verdadeira razão da constituição do grupo coral “Enquanto Canto”.
Também aqui a vossa cronista aderiu timidamente ao grupo, longe ainda de conhecer a verdadeira dimensão altruísta que constituía a retaguarda deste projecto, visionário da afinação artística enquanto expressão de luta política. Logo eu, para quem Motetos e Madrigais eram consultas obrigatórias à enciclopédia…
Sei agora que o esforço dispendido entre oitavas acima e oitavas abaixo foi em vão, pois as motivações do ex-presidente eram outras e, com ou sem afinação, o resultado seria o mesmo. Para além disso muitos candidatos e candidatas revelaram-se dissonantes, insistindo teimosamente em afinar por outro tom, circunstância que trouxe alguns dissabores ao Movimento. Porém, julgo que, sem querer fazer futurologia ou qualquer juízo de valor, no longo percurso que se avizinha só uma comunidade verdadeiramente afinada poderá sensibilizar os altos dignitários da nação para a nossa causa. Há quem diga que o actual presidente não é sensível a estas erudições, que é duro de ouvido e culturalmente limitado, contudo imaginem o grupo "Enquanto Canto" às portas do Palácio de Belém ou nas escadas de São Bento entoando ordeira e afinadamente hinos religiosos em jeito de reclamação política. Lindo não era! E a imprensa! O que diria a imprensa!
Portanto meus amigos cumpram a vossa obrigação. Apoiem incondicionalmente o “Enquanto Canto”, pois já lá dizia o outro “a cantiga é uma arma contra a tirania, a cantiga é uma arma e eu não sabia”. Agora já sabem. Bons repenicos.

sexta-feira, junho 16, 2006

Alfa-pendular

Não raras vezes esta terra que eu gosto sufoca-me. Bem sei que sou eu a culpada. Incapaz de reter ansiedades cosmopolitas, que, mesmo cumpridas, se fazem acompanhar invariavelmente de monótonos regressos, embarco em viagens insensatas, em busca de um breve momento de urbanidade, um ou dois dias (ou noites) de muita gente à minha volta. Outros discursos, outra pronúncia, outros códigos, a mesma ausência... a cada viagem mais acentuada - a tua ausência.
Pareces radiante quando me esperas, no cais da Gare do Oriente. Depois levas-me a jantar e começa a cortante saga do telemóvel. É fim de semana, dizes, é fundamental que a malta se organize... sabes, aqui não é como em Canas, aqui temos que nos procurar e combinar os programas com antecedência, reunir consensos, senão é um caos de desencontros, problemas de estacionamento, dificuldades para entrar nos bares, nas discotecas, incompatibilidade de gostos, enfim, estás a ver... é o que faz a diversidade...
A diversidade de que eu venho à procura e que me irrita mal a encontro. Mas esta sou eu, com as minhas insatisfações, sabedora da razão porque não pegas em mim e me depositas tranquilamente naquele bar de que eu gosto e onde já nos divertimos sozinhos. Não, agora temos que partilhar tudo com as tuas amigas, que, coitadas, não conseguem disfarçar o incómodo acumulado de gostarem de ti e de te reservarem para mim nas poucas vezes que estou. Sempre solícitas, disfarçando sorrisos comprometidos no sabor dos teus beijos comunitários.
Não. Não são ciúmes, pois o tempo (o meu tempo) já tratou de os apaziguar. Já só gosto de ti nos solavancos do comboio, esporádicos sobressaltos do meu corpo, que insiste, todo ele, em desejar a agitação da grande cidade.
Mesmo assim gosto quando me aguardas no cais. Mesmo assim gosto que me leves a jantar. Mesmo assim regresso insatisfeita.

B~~

segunda-feira, junho 12, 2006

Milimétrico

Apimentei a comida! Antes tinha procurado com gestos bruscos “Como Água Para Chocolate”. Recordava vagamente que este livro tinha, algures no meio da história, uma receita condizente com o meu estado de espírito. O melhor tempero nem sempre é o amor, por vezes um prato bem decorado enche-nos a alma, dizias tu, buscando razões para as tuas futuras traiçõezinhas.
Desdecorada é como eu me sinto…e as lágrimas que teimam em não cair engrossam a represa onde acumulo as mágoas deste desamor. Um fio de azeite, uma cebola picadinha, incapaz de me abrir as comportas dos olhos. Iguarias várias e a receita por cumprir. Nem uma única lágrima.
Apimentei a comida!

sexta-feira, junho 09, 2006

Pós-modernismo e estética

Por oposição ao espírito moderno que em nome da universalidade da razão se libertou das tutelas do sangue e da fé, afirmando a crença no futuro e no progresso, as sociedades pós-modernas estabelecem-se em plena crise desse optimismo romântico.
O indivíduo perante o estilhaçar de todas as suas crenças, reduzido brutalmente aos limites da morte, já não quer saber do futuro e muito menos de uma ideia de infinito. Infinitas são as possibilidades de consumo e o sujeito já não se projecta numa ideia, consome-se antes na efemeridade do gozo, na realização do desejo e na desculpabilização hedonista do ócio.
O conceito platónico do belo como ideia e o ideal de contemplação levaram a uma desvalorização das artes considerando-as simples imitação, assim como a uma desvalorização individual do artista. A verdadeira arte é a da clarificação dos conceitos, a da filosofia, e não a da aparência ilusória e transitória dos objectos físicos. Belo, Verdade e Bem consubstanciam-se na afirmação da origem imutável das ideias e consequentemente na desvalorização da obra de arte enquanto imitação imperfeita, corruptível, da verdadeira realidade que é de natureza ideal e, portanto, impossível de traduzir na materialidade da obra de arte. Esse ideal, fisicamente irrealizável, deve, no entanto, ser a referência absoluta do artista que deve procurar ser o mais fiel possível a esse ideal de perfeição, funcionando a ideia como modelo e a obra como cópia. E o artista, o que será? O demiurgo que estabelece a relação entre dois mundos ou o falsificador que através da obra desvia o olhar da verdadeira essência da realidade?
Com o advento do Cristianismo, a arte, enquanto representação alegórica de conteúdos sagrados, faz diluir a personalidade do artista por detrás da superioridade da mensagem a transmitir. Os temas bíblicos e a sua evocação dominam a arte medieval e o conceito de Belo dilui-se perante a urgência de salvação e penitência. Belos são os actos e o compromisso da alma com a própria salvação. Belas serão as obras quanto melhor realizarem a mensagem de fé. A arte não é para usufruir, mas para fazer acreditar e, como aquilo que ela representa é de ordem espiritual, só pode assumir um conteúdo alegórico. Basta recordar que na Idade Média, as artes plásticas se afirmam na estatuária sacra e na pintura representativa de cenas bíblicas, o teatro nasce dos autos de fé e da representação da via sacra e a arquitectura afirma o poder secular da igreja que na terra assegura o poder da palavra divina.
Com o Renascimento, o gosto pelos temas clássicos, o naturalismo associado ao ‘saber de experiência feito’, recupera o corpo físico para a arte, tornando-o objecto não só de contemplação estética, mas também de curiosidade científica. O artista torna-se um visionário e um sábio, recordemos Da Vinci, e reabilita-se o estatuto social do artista, assim como a sua visão iluminada. Reabilita-se também a ideia clássica do Belo enquanto expressão perfeita da harmonia geométrica do mundo das ideias e do equilíbrio orgânico entre o corpo e a alma. Evoquemos a este propósito as semelhanças entre a representação do corpo humano em Da Vinci, ou em Miguel Ângelo, e a Vénus de Milo, e outras esculturas clássicas. Comparemos a forma como o corpo é representado na arte sacra medieval, escondido por camadas de roupa que, ao contrário de o sugerir ou desvelar no seu potencial estético, antes, o escondem, reduzindo-o à dimensão do pecado e da concupiscência; recordemos particularmente o corpo das mulheres que para cobrirem as paredes das igrejas eram transformadas em objectos bojudos cobertos de “cortinas”, evocando do corpo apenas a sua dimensão maternal - a mulher, objecto de adoração enquanto santa, e portanto exemplar, e nunca como objecto de desejo e posse, excepto enquanto prefiguração do pecado e da condenação eterna.
Com o Renascimento, mantém-se a dimensão ideal do conceito de belo e o ideal da arte é ainda a representação, recuperando-se, no entanto o gosto pela estética do físico e o sentido original da aisthésis grega. A arte é dos sentidos e é também ciência e poder. Facilmente, o conceito da arte evolui no sentido da figuração fiel. A arte será representação mas não só dos temas bíblicos e laiciza-se representando a vida social e a concomitante ascensão da burguesia, ao mesmo tempo que a obra de arte se torna o símbolo social do poder daquele que a possui e o artista é elevado à categoria de génio inventor.
Mas a realidade transformada em função desse espírito científico haveria de eclodir com a Revolução Industrial, e os males sociais e as misérias do proletariado haveriam de impor-se ao artista, chamando-lhe a atenção para a função social da arte e o papel de denúncia que lhe compete, enquanto criador ao serviço de uma ideologia. Ao desviar-se a atenção do artista para as vicissitudes da vida humana e para a miséria irracional das suas existências individuais, o conceito de Belo, começa a perder essa dimensão ideal e ganha contornos bastante mais mutáveis.
Com a invasão do Inconsciente e a queda definitiva da essência racional do homem, a subjectividade liberta-se da submissão a um princípio infinito fundador e rapidamente assume todas as formas de expressão possível. O artista liberto de uma ideologia exprime-se a si próprio e à sua relação com o mundo. A descrença no progresso e a angústia pelo absurdo da existência, libertam expressões artísticas como o surrealismo cujas categorias estéticas já não são medidas pelo conceito de belo.
A pós-modernidade é herdeira da criação e aniquilação de todas as metafísicas, do poder eufórico da técnica e das suas catastróficas consequências ambientais, da crise de todas as ideias de perenidade. Perante a queda de todas as crenças, a representação mais original será a representação de si. A arte torna-se plena expressão. Mas essa possibilidade criativa confere ao artista, desprovido de crenças seguras, a consciência da fragilidade do seu estatuto social, tanto mais que desapareceram os cânones que definiam o que era a arte. O individualismo crescente das sociedades pós-modernas implica para o artista a possibilidade de se tornar objecto de culto e simultaneamente ser engolido por esse culto do indivíduo, nas malhas gerais do consumo.
A efemeridade da moda, e do desejo nela projectado, é elevada a categoria estética e o conceito de obra de arte deixa de ter a perenidade como uma das suas características necessárias, evoquemos as artes do espectáculo e particularmente essa psicadélica invenção dos anos 60, o chamado happening.
Por todo o lado, a arte é grito, é expressão, provocação, horrível, belo-horrível, o pop, o kitsch. A arte pode ser tudo, mas independentemente daquilo que entendemos por arte ou por belo, ou por estético, o certo é que, mesmo nesta sociedade de consumo, a disposição para o belo, a atitude estética, essa parece revelar-se como a única categoria indiscutível, ninguém entra numa loja e pede que lhe vendam os sapatos mais caros e mais feios que houver disponíveis.

B~~

terça-feira, junho 06, 2006

Desesperadamente à procura do Tininho

O camponês confrontava-se com um verdadeiro problema. Tinha 180 galinhas para rentabilizar e nenhum galo à altura da situação. Juntou os parcos trocos que lhe restavam e dirigiu-se à vila mais próxima com a intenção de adquirir um galo cobridor, experiente na especialidade.
- Boa tarde. Preciso de um galo capaz de dar despacho à galinhagem lá da quinta.
- Quantas galinhas tem? Perguntou o vendedor.
- Ao todo são 180 – respondeu o camponês.
O vendedor, sisudo na sua responsabilidade, foi buscar uma gaiola com um galo enorme, possante, crista em riste e tatuagem no peito – I Love Chicken.
- Leve aqui o Tobias. Vai ficar bem servido, e as galinhas também.
O camponês leva o galo e, no dia seguinte, pela manhã, solta-o no quintal. O Tobias corre desenfreadamente, salta para cima da primeira galinha, da segunda e cai para o lado.
O camponês, estarrecido, pega no galo e volta à vila para tirar satisfações do vendedor. Após ter explicado o sucedido o vendedor desfez-se em desculpas e prontificou-se a ceder-lhe outro galo, este sim, um verdadeiro campeão. Trajava altivo, de preto, ténis Nike, crista exuberante.
- O Albertino, uma fera – assegurou o vendedor.
O camponês voltou à quinta e repetiu a manobra. Soltou o bicho no quintal. O Albertino galga para cima da primeira, atraca a segunda, submete a terceira mas, quando chega à quarta, cai morto no chão da quinta.
O camponês revoltado pega no galo e torna à vila. Entra no estabelecimento e diz para o vendedor:
- Olhe lá, meu grande sacana, este é o segundo galo que você me arranja e o engenho para a coisa quedou-se na quarta galinha. É melhor arranjar-me um galo decente antes que eu perca a paciência.
Então o vendedor vai buscar um terceiro galo, decrépito, sem crista nem penas, olheirento, corcunda, com ténis de lona e uma camisa desbotada com os dizeres "Woodstock Forever".
- Olhe, é só o que me resta. O nome dele é Tininho.
O fazendeiro, ainda furioso, leva o galo, pensando:
- Mas que raio é que eu vou fazer com este enjeitado?
Chegado à fazenda solta o Tininho. O galo despe a camisa, atira-a para o lado e sai enlouquecido, fazendo as 180 galinhas de um fôlego, numa refrega indescritível. Pára para respirar e arremete às 180 de novo. Insatisfeito, monta o pastor alemão, que pouco habituado a estas intimidades, gane desesperadamente para que o dono ponha fim ao suplício.
O camponês estupefacto com o atrevimento, agarra-o, dá-lhe dois sopapos para o acalmar e tranca-o na gaiola.
- Mas que raio! Este galo é um fenómeno! - pensa o fazendeiro.
As galinhas confidenciam comentários tipo "o Tino isto", "o Tino aquilo", "o que é que ele fez contigo?", "comigo ele fez assim e assado"... loucura total, todas as galinhas estavam agradadas com o velho Tininho.
No dia seguinte o camponês voltou a soltar o galo; o Tininho sai a levantar poeira do chão, dá duas voltas à quinta aviando tudo o que é de aviar, ele é cão, ele é porco, ele é vacas….
O camponês corre atrás dele, agarra-o pelo pescoço, dá-lhe uns abanões para o acalmar e volta a fechá-lo na gaiola.
- Que galo desaustinado! Vai-me dar cabo da bicharada toda!
No dia seguinte vai buscar de novo o galo, porém encontrou a gaiola toda rebentada e do Tininho só o rasto. As galinhas de barriga para o ar, regaladas, o porco roncando satisfações, as vacas deitadas no chão a trocarem impressões sobre as performances do Tininho e o cachorro, envergonhado, gania baixinho, julgando assim disfarçar a infâmia.
- Olha a minha vida! Se ele se atrever com o gado dos vizinhos, vão-me matar!
Sai ao encalço do estupor, seguindo a evidência das pistas. Cabras a suspirar, bodes, de gelo no respectivo, uma tartaruga que perdeu a carapaça no encontro, um touro ruminando imprecações, três recos a coxear, uma mula desembestada, e outros que não viu, mas de igual forma acometidos. De repente e à distância, vê o Tininho caído inânime no chão. Um cenário triste. Os abutres já voam em círculos, adivinhando a refeição.
- Não, Tininho, não. Morreu o Tininho! E logo agora que eu tinha encontrado um galo capaz. Má sorte a minha. Está bem, era desvairado, mas e agora de que me servem as galinhas…
Mas nem sempre aquilo que parece o é verdadeiramente. No meio das lamentações do camponês, Tininho abre um olho, olha para o dono e, assinalando os abutres, sussura-lhe:
- SShhhhhhhhh! Cala-te e deixa-os pousar...

Boas bicadas