domingo, dezembro 30, 2007

Provocação 10

Meu Deus peço-Vos sabedoria para entender o meu homem, amor para perdoá-lo e paciência para suportar as suas atitudes, porque se vou pedir força bato-lhe até o matar

terça-feira, dezembro 18, 2007

UCI


A Unidade de Cuidados Intensivos é apertada e a maquinaria que mantém os pacientes sob vigilância electrónica ocupa a maior parte do espaço. Na unidade estão sete doentes.
Com a regularidade das visitas cria-se empatia com os familiares, trocam-se experiências, suposições, especulações, para daí tentarmos extrair uma lógica comum no evoluir da situação. E não adianta virem os técnicos dizerem-nos que cada caso é um caso, que cada doente tem a sua própria forma de recuperar e por aí fora, precisamos de um caso em que tudo correu bem para relacionarmos e verificarmos se o nosso doente vai por esse caminho. A “psicologia” dos enfermeiros na abordagem da situação é académica, são evasivos por formação (ou por deformação), sobretudo quando a coisa está má. Quando o caso corre como esperado, “dentro dos parâmetros normais para este tipo de intervenção”, como dizem naquela linguagem estudada que nos descansa mas não diz nada, lá vão deixando cair esporadicamente uma ou outra informação. Compreendendo as reservas destes profissionais que trabalham com os nossos doentes, restam-nos informações laterais na boca dos familiares mais antigos. Se temos a sorte de confidenciar a intimidade da doença do nosso ente querido com alguém a quem a situação correu bem, vimos de lá animados, confiantes que a natureza humana não é assim tão diferente e se àquele foi assim ao nosso assim será; mas há sempre um mensageiro da desgraça, há sempre alguém que faz questão em fazer-nos lembrar que a Lei de Murphy é extensível à fragilidade humana.
Aguardo pacientemente no corredor e deambulo o pensamento sobre assuntos triviais, como o dinheiro que o estado gasta na gestão destas unidades, um balúrdio. Mas sinto-me satisfeita, estamos sempre a dizer mal do nosso país e acabei de constatar que temos o que há de mais moderno e sofisticado para acudir aos nossos doentes, talvez seja difícil arranjar atempadamente uma vaga, que a procura é muita e a oferta do estado, a avaliar pelas listas de espera para as intervenções cirúrgicas, não chega a todos, mas, talvez pela gravidade do estado de saúde do meu doente, todo o processo se desenrolou com uma brevidade surpreendente, facto que só me deixou mais apreensiva, com tanta rapidez o doente desconfia. São milhões de euros dispostos à volta e à disposição dos enfermos, cada cama tem três monitores que registam através de dezenas de terminais e outros tantos aparelhos cada palpitar do corpo, depois as tais máquinas de apoio, ventilador, ressuscitador, etc. etc., aquelas que mantêm os mortos vivos. Em constante azafama, no silêncio compenetrado que a responsabilidade das tarefas exige, o corpo de enfermeiros analisa os valores de toda aquela maquinaria e ministra os cuidados aos pacientes, tudo de forma pragmática e eficiente, gestos meticulosos, sem hesitação. Este cenário pode parecer mórbido mas se nos abstrairmos dos nossos dramas pessoais, podemos, sem esforço, apreciar este palco “fantástico”, onde vida e morte se debatem, num “espectáculo” onde a ciência humana joga, desta vez, a favor da vida.
Espero cá fora, no corredor, confinada a um cantinho, para não incomodar o exército de salvação. Como todos os exércitos este também tem as suas patentes e as suas fardas. Os médicos fardam de branco e trazem sempre o estetoscópio ao pescoço, os administrativos também mas sem estetoscópio, os enfermeiros trajam de verde-escuro e os auxiliares de azul-bebé. Estes pormenores podem parecer vulgares à primeira vista mas ganham especial importância na nossa primeira incursão à unidade, precisamos de referências, são eles o elo de ligação com o nosso doente, são eles que tomam conta dele, e depois não devemos tratar os enfermeiros por doutores… não é que eles não gostem (lol), mas seria profissionalmente incorrecto um enfermeiro acatar o título num meio onde os doutores são efectivamente os médicos. Lá ao fundo, nas enfermarias, o corpo clínico acode placidamente aos chamamentos dos desafortunados que ainda têm um sopro de energia para clamar, é uma procissão de enfermeiros, técnicos, macas, aparelhos, doentes, e sei lá mais o quê…
Finalmente a médica de cabelos grisalhos, elegante, aparece. Tem um sotaque enganadoramente algarvio. Confidencia-me na penumbra do corredor alguma tranquilidade, o meu doente é mimoso, diz sorridente, as dores que tem não justificam o alarido, vou dar-lhe alta. Simpatizei com ela, ao contrário de uma ou outra auxiliar hospitalar que, aproveitando a fragilidade da situação a que todos ali estamos sujeitos, exercem uma autoridade indisposta, baseada no poder comezinho que lhes é concedido para nos barrar as portas, para questionar o porquê da nossa presença, para nos mandar aguardar eternamente sem qualquer explicação… em caso algum, solícitas para efectivamente auxiliar, como a sua categoria profissional supostamente indica.
Abandono a UCI, a porta fecha-se nas minhas costas, respiro fundo, uma lufada de ar fresco enche-me o peito, sinto uma satisfação interior muito grande, ou um alívio. Levo o meu doente pelo braço, já resmunga, sinal que não deixou o mau feitio na sala de operações. Na sala de espera já se acumulam os próximos candidatos à UCI, lembro-me de estar ali com o mesmo olhar perdido que agora lhes detecto. Apetece-me confortá-los, dizer-lhes que vai correr tudo bem, contar-lhes o meu caso… mas nunca se sabe, como dizem os enfermeiros, cada caso é um caso.

quarta-feira, dezembro 12, 2007