segunda-feira, junho 25, 2007

Crónicas da Galinha Riça - Memorial dos passeios


Vieram de longe estes artífices da pedra. A obra era megalómana e o aparato da chegada dos operários trouxe ao adro da igreja muitos curiosos animados pela novidade e pela extravagância da ocorrência. Não era comum nesta vila beirã assistir-se à execução de obra de vulto, facto que desde logo levantou algumas suspeitas, mas, iniciados os trabalhos, logo a suspeição se desvaneceu para dar lugar ao assombro. O ar boquiaberto da assistência não dava lugar a dúvidas, o início da obra não era uma miragem. A maquinaria avançou convicta, seguida de pedreiros, assentadores, calceteiros, tudo numa roda viva, confirmando a sumptuosidade do empreendimento. Qual Torre de Babel, a obra estender-se-ia para além da visão mais apurada, desaparecendo do alcance humano na encruzilhada das Alminhas, à Fonte da Cruz, relação assaz curiosa, como mais à frente ireis perceber.
Na senda de outros empreendimentos, também este foi planeado em jeito de promessa por graça concedida. Salvaguardadas as distâncias e as circunstâncias históricas é inevitável a comparação entre a execução dos passeios da Avenida da Igreja e a construção do Convento de Mafra, não só pela complexidade do projecto mas também pela motivação dos seus mentores.
O rei D. João V, amante desenfreado das mais belas freiras do reino, ficou desconcertado na sua virilidade quando verificou a fealdade da sua consorte D. Maria Ana de Áustria. Ora, não havendo falta de freiras à altura, D. João V negligenciou a câmara nupcial da rainha privando-a da sua mui preciosa semente real. Passaram-se assim dois anos sem que D. Maria Ana sentisse o vigor da fertilidade, agravo ainda maior se atendermos às consequências políticas que a falta de herdeiros implicava. Perante o absoluto repúdio que a rainha lhe incutia, D. João V, rodeado das suas acólitas predilectas, fez votos a Sto. António, prometendo construir um grande convento caso visse garantida a improvável descendência.
Pois de milagres vivem as desonestas intenções. O santo casamenteiro lá se aprestou a virar o gume ao arado e a encaminhar o nosso rei a rego certo. Deste encaminhamento nasceram cinco filhos e com o ouro abundante que lhe chegava do Brasil deu cumprimento à promessa. Mandou construir o convento de Mafra.
Também aqui por Canas reinam desconfortos conjugais. Todos sabemos que a “madrasta”, cognome que um conceituado cronista cá da praça atribuiu à rainha que nos calhou em sorte, não morre de amores por nós, mas, mesmo de cabeça enfeitada por infidelidades permanentes, insiste neste casamento forçado que se arrasta quezilento há mais de um século. No nosso caso não está em causa a questão da descendência, pois a “madrasta” é estéril e, por mais que lhe enchamos o baú de diamantes, dali não sai nada; o que ambicionamos mesmo é o divórcio pleno, por isso optámos pela via litigiosa, ainda que os frutos colhidos nos tenham, por enquanto, sido amargos.
Mas, dizia eu, é notória a similitude de processos entre a recusa de D. João V e a cupidez da “madrasta”. Aquele, temendo a desagregação do reino na ausência de herdeiro, invocou o santo por via de promessa conventual para que lhe assegurasse a linhagem, esta, confrontada com a possibilidade de ver o seu território fracturado, rogou a São Salvador que fizesse jus ao nome e lhe salvasse a unidade territorial concedida pelo inusitado matrimónio. Em reconhecimento prometia construir belos e extensos passeios ladrilhados a granito na avenida de Sua santa morada. Para feito difícil, promessa grandiosa, como mandam as regras canónicas.
Foi atendida a “madrasta” que assim evitou a desagregação do território e consolidou o insensato casamento. Agora, mãos à obra que é preciso pagar a promessa, não vá o Diabo tecê-las.
Mas esta terra é difícil. Nem os homens cuidam do cumprimento de promessas nem os santos se entendem quanto à administração dos milagres. Iniciados os trabalhos não foi preciso muito tempo para verificar o malogro. Especula-se que foi tanto o empenho dos operários a martelar a pedra e a esburacar os passeios que, as alminhas residentes na encruzilhada da Fonte da Cruz, logo ali, a cem metros dos trabalhos, acordaram do sono secular a que a distracção divina as tinha condenado e urravam agora lancinantes perante os renovados suplícios do purgatório. Tementes a estes fenómenos sobrenaturais, os trabalhadores, crentes e não crentes, ficaram aterrorizados e fugiram desordenadamente, abandonando maquinaria, ferramenta e material. Ainda hoje não se sabe onde eles param.
Estarrecidos ficaram também os canenses, não por efeito do fenómeno, que ao purgatório já estão habituados, mesmo que o dos vivos, pois que conste, nada prova que seja menos doloroso que o dos mortos. O que os pasmou foi a “madrasta”, pois ao que parece, inspirada nos dons etéreos de Blimunda, anda prestimosa a recolher as vontades dos moribundos agonizantes das Alminhas. Se essas vontades, preservadas em âmbar, tinham o poder de fazer subir a complexa passarola do Gusmão também haveriam de erguer os igualmente difíceis passeios da avenida.

Bons repenicos

4 comentários:

BigEye disse...

É preciso é ter calma, mas, penso eu, que os passeios da Avenida hão-de ficar prontos.

Cristalinda disse...

Assim hajam almas e vontades e Blimundas... e já agora Baltasares Sete-Sóis, lol

Luis Martins disse...

eu ja ando a juntar vontades...

Cristalinda disse...

Samuel, tem muito trabalho pela frente. Olhe que nem todas as vontades de Canas lograram alcançar o famigerado concelho. Ainda assim, boa recolha...