terça-feira, junho 05, 2007

Festa da Póvoa. Um conto imperfeito.

Ele sabia que ela estava lá. Talvez rodeada de amigos, inacessível, mas estava lá e isso bastava-lhe.
Demorou-se em preparos, ora disfarçando uma borbulha inconveniente, ora esfoliando um ponto negro mais teimoso. O cabelo já tinha adquirido a forma desejada e o boião do gel repousava agora vazio, junto do frasco de after-shave barato que a tia lhe tinha oferecido pelo 16º aniversário. Lavou dentes e gengivas, quase até à sangria. Puxou a língua e esfregou-a até ao vómito. Por fim, deu estes preliminares por cumpridos, ajeitou os óculos e lançou um último olhar ao espelho. Invadiu-o uma tremenda sensação de insegurança: porque haveria ela de olhar para ele, sempre deslumbrada pelos betinhos do costume, ou então encantada com os trejeitos dos palhaços que lhe faziam a corte, de piada fácil, desinibidos, a lançar-lhe palavrões aos ouvidos… e ele que só lhe queria dizer palavras bonitas, daquelas de amor.
Já tinha pensado as palavras que lhe diria, até se dera ao trabalho de decorar umas quantas frases em inglês, sacadas dos seus temas musicais de eleição. Ah como gostava que ela ouvisse as suas músicas e depois ouvir as dela e depois ouvi-la só a ela… ah como desejava que o mundo acabasse e ficassem só eles, na feliz condenação do “Armagedon”; uma nova ordem universal.
Voltou à realidade. Pelo menos podiam ser amigos, ou fazer parte do grupo dela. Mas como, se ela o ignorava totalmente. Na escola, o ano tinha sido um inferno: as notas miseráveis; a inadaptação às lentes de contacto; os cabrões dos amigos dela, uns crápulas; as namoradas dos outros, sempre ofegantes, a denunciar salivas apetecíveis; as amizades traídas; as amiguinhas dela, levianas, a arrastar a asa a tudo quanto mexia (menos a ele) e ela, insuportavelmente omnipresente, tão perto e tão longe, devastando a pouca auto-estima que lhe ia restando.
Agora a roupa! As mães nunca antecipam estas ânsias. Logo agora que precisava daquela t-shirt gap é que a mãe tinha decidido dar-lhe sumiço. Interpelou-a furioso e não descansou enquanto a pobre não encontrou o desejado adereço boutiqueiro. Adereço boutiqueiro é como quem diz, que esta t-shirt foi adquirida na feira, contrafacção muito jeitosa que a mãe arrematou por dez euros após o inevitável regateio. Mas pronto, a imitação passava despercebida e nada indicava que algum entendido ou entendida lhe questionasse a autenticidade.
Finalmente uma última consulta ao espelho. Tudo em ordem. Saiu amparado pela ténue esperança da noite lhe ser favorável. O plano era simples: aproveitar o terreno neutro da festa para se misturar no grupo dela; depois de integrado, tentar chamar a atenção dela, isto é, intervir com graça e inteligência, se possível ser sedutor, mas, acima de tudo, falar com ela.
Quando magicava o estratagema lembrou-se de um filme que tinha visto, “Fala com ela”, de um realizador espanhol qualquer de que não lembrava o nome. Era uma história engraçada, de esperança e desejo: um enfermeiro apaixona-se pela sua doente em coma e fala com ela como se estivesse consciente, conta-lhe os filmes que vê, os livros que lê, acaba por fazer amor com ela, comatosa...
Fala com ela, fala com ela... estas palavras ocupavam-no por inteiro.
Tudo correu como previsto. A inibição inicial foi facilmente ultrapassada e até foi por mais de uma vez contemplado com gargalhada geral aquando de umas graçolas oportunas. Os amigos dela não o hostilizaram e as três cervejitas que bebeu soltaram-lhe a língua. Fala com ela, fala com ela…
Adoro-te.
A palavra saiu baixinho, envergonhada. A princípio ninguém se apercebeu.
Adoro-te, repetiu, agora de uma forma perceptível e com o olhar fixo nela. Alguns dos presentes tomaram consciência do que se estava a passar e calaram-se incrédulos.
ADORO-TE, insistiu, mas agora de forma incontornável.
Ela ficou petrificada. Todos se calaram. Os olhares da assistência buscavam ora um ora outro, sem perceberem muito bem o que se estava a passar. Um silêncio pesado e confrangedor tomou conta da mesa. A música do recinto distanciou-se, como a banda sonora dos filmes românticos quando o plano requer o protagonismo dos actores.
Adoro-te, insistiu ele. Depois baixou os olhos.
Vergonha. Uma vergonha calada deu lugar ao arroubo inicial e instalou-se incómoda. Valeu alguém comentar qualquer coisa ininteligível para, aos poucos, os convivas recuperarem da surpresa. A música ganhou sonoridade e rapidamente se reinstalou a normalidade na mesa.

Este “benjamim” não logrou alcançar o beijo apoteótico, nem a malta gritou “aí benjamim”; também não falou com ela. Este “benjamim” secou fundo as lágrimas que havia de chorar mais tarde e abandonou o recinto da festa cabisbaixo, impelido pelo malogro, tomando nas mãos vazias a imperfeição do mundo, desacreditando a ordem natural das coisas, odiando a ordem imperfeita da adolescência.

8 comentários:

nuncapior disse...

Mais uma fantástica história adocicada com fantasia "hollywoodesca"...

Mas pessoalmente...
Adorei o último parágrafo!

Foi um paragrafo bem português!
Continuem, gostei!

Cumprimentos.

Unknown disse...

Li uma data de posts e estou siderado... Viva Canas e as Mulheres que dão corpo a este blog.
Vitor

António disse...

Eis a prova do matriarcado no nosso meio social.

Cristalinda disse...

nuncapior
seja bem-vindo(a)
obrigada pela análise

Vitor
seja bem-vindo também
obrigada pelo elogio

antónio
constato que nos tem seguido com alguma atençaõ
muito obrigada pelas visitas

Boas minhocas para todos

BigEye disse...

Boas...

Gosto de passear o meu olho pelo que dizem as galinhas deste poleiro, mas, neste post, fiquei muito mais contente por se ter referido à FESTA DA PÓVOA.
Também gostei da ficção...
Para o ano que haja outra FESTA pelo menos igual.

Cristalinda disse...

bigeye
a vossa festa (penso que seja da Póvoa) deve ter tantas histórias para contar...
Volte sempre e obrigada pelo comentário. Certamente haverá mais festas, tão boas ou melhores que esta. Até lá, espero que "este benjamim" recupere :)

Catarina disse...

Este deixou-me sem palavras,portanto,comento para o próximo.

Luis Martins disse...

não sei se foi ficção...
se calhar isso aconteceu!!!
se calhar ele ainda está viddrado em qualquer coisa que ainda não apareceu!!