segunda-feira, junho 11, 2007

Alfa Pendular. Catenária.

Desta vez tens um programa especial.
Temo os teus programas. Ao princípio ainda ficava entusiasmada com a ideia. Pensava ingenuamente que tinhas feito aquele frango de caril picante e mo desses a provar no conforto da tua sala, convenientemente preparada para uma longa sessão a dois. Isto, quando habitávamos sozinhos a tua sala.
Gosto da tua sala. Não me canso de olhar as lombadas volumosas dos livros abandonados à desordem do teu método de trabalho. Mas do que eu gosto mais é da biblioteca. Vagueio por entre as estantes em carvalho escuro, repletas de preciosidades literárias, herdadas da tua mãe e acumuladas por anos e anos de religiosa devoção à leitura. Por vezes gracejavas da tua mãe, dizias que tinha gasto a fortuna do senhor coronel em livros. O senhor coronel que sustentava a amante insaciável com literatura. Sempre mais e mais livros, a medida de um amor proibido. Gosto de imaginar as histórias que esta sala enorme encerra. Em frente à janela que dá para o terraço ainda conservas a poltrona onde a tua mãe desfolhava as incontáveis páginas que o coronel providenciava; na mesa de apoio um livro entreaberto resiste à preguiça da leitura; ao fundo, abandonado à tua letargia, o piano geme desafinado, despertando da sua longa hibernação quando lhe acaricio as teclas; nas paredes, os teus antepassados reprovam o atrevimento da intrusa. Saio para o terraço.
Chamas-me, longínquo. A casa é enorme, daquelas casas aristocratas onde quatro gerações podiam coabitar harmoniosamente. Já foi majestosa, agora deteriora-se, confirmando a decadência das grandes famílias. Ouço vozes femininas. São as universitárias a quem alugas quartos e sei lá mais o quê… tinha que ser, disseste-me, a casa precisa de obras. Não denotam qualquer admiração por me verem ao fundo do corredor, sinal de que é comum a presença de estranhos por aqui. Nada que eu não soubesse.
Estou no terraço, gritei. Contemplava a vegetação que sufoca o antigo lago do jardim interior. Uma corda arqueava sob o peso da roupa das universitárias. Numa das extremidades ombreavam lado a lado as cuecas dele com as das meninas… mas por que raio haviam de estar presas na mesma mola?
Libertei-me destes melindres, respirei fundo e voltei à sala. Voltaste do banho que eu recusei. Estava com o período e não me apetecia partilhar amores de banheira nestas condições. Disse-to e tu sorriste compreensivo. Fosse noutros tempos e insistirias na barrela. Tomaríamos um banho dionisíaco e cantarias hinos às bacantes chafurdando alegremente na água tingida de mim. Agora! Agora tens um programa especial…
Vamos ver “A Gaivota” do Tchekov, disseste de rompante, tentando surpreender-me.
És sempre tão previsível quando me queres agradar. Há tempos disse-te que o meu actor preferido era o Luís Miguel Cintra. Não te esqueceste…

Regresso a Canas. O comboio desliza veloz. Não consigo concentrar-me no livro que me emprestaste, aliás que me aconselhaste. Olho a paisagem em fuga e reparo que a única imagem fixa que retenho é a da catenária que acompanha toda a extensão da linha, um imenso estendal, ridículo, repleto de cuequinhas de mão dada, unidas pela mola do meu descontentamento.

Boas minhocas

2 comentários:

BigEye disse...

... mais uma vez gostei.

Mas, porque não tirou a mola do estendal? A tal, que unia as peças de roupa?

Cristalinda disse...

Isso ocupava mais um parágrafo e seria inconsequente para o rumo dos acontecimentos... e do meu descontentamento.