quarta-feira, julho 19, 2006

A possível história do gato

Cristalinda espero que me perdoe a usurpação da ideia. Ao ler o seu texto “Os telemóveis são uma chatice”, ocorreu-me escrever algo que pudesse entroncar no seu breve desabafo. Espero que goste e que o publique no vosso “berloque” se for esse o entendimento. Beijos. Rosalinda.


*****

Vivíamos na cidade. Cada um no seu apartamento. Em nenhum deles havia uma varanda, nem sequer um simples metro quadrado, para onde se abrisse uma porta e pudesse estar de imediato ao ar livre, sem sair de casa.
Claro que acabávamos sempre em conversas acerca de viver numa casa com quintal, assim, do tipo campo, sobretudo um espaço onde se pudesse criar um gato.
O que tu gostavas realmente era de ter um gato. Mas não um gato maricas de apartamento. Isso é a pior coisa que se pode fazer a um gato – dizias tu, mesmo a sério.
Eu tinha a nostalgia de uma casa com quintal e flores e crianças a correrem à volta, tal como vivêramos na infância. E uma lareira com porta directa para o ar frio da noite e para as surpresas costumadas do quintal.
Em vez disso, tínhamos casas em que os nossos filhos estavam mais ou menos enjaulados. Os teus passavam contigo um fim de semana por quinzena. Os meus viviam comigo a semana inteira.
Quando chegava o teu fim de semana, íamos todos para o teu apartamento e, pelo menos na noite de sexta para sábado, os teus cruzavam-se com os meus e lá foram aprendendo a gostar uns dos outros. Os teus, os meus. A nenhum podíamos chamar ‘o nosso’, mas eram todos nossos. Ás vezes vinham outros filhos com outros pais de fim de semana, ou outras mães, em fim de semana ou a tempo inteiro.
Estas novas formas de família podem transformar as nossas vidas num inferno, sobretudo quando somos ainda campónios na alma e a memória da nossa infância não se reconhece no presente dos nossos filhos.
Refugíamo-nos na possibilidade de regressar quando nos reformarmos e nos tivermos libertado das ralações com os filhos. Vê-los arrumados, não há ideia que reconforte mais o coração dos pais. Bem, arrumados não digo, mas pelo menos, encaminhados, assim p´rá idade do Raul que está a sair todo direitinho – respondes tu, esperançado que os mais novos sigam os moldes do primeiro que, ao contrário do que seria fácil de prever, tinha saído um miúdo ‘super-atinado’.
- Meu amor, os filhos nunca deixam de ser uma preocupação.
- Está bem. Mas vê-los bem encaminhados pelo menos.
- Bem encaminhados! Meu pobre amor. A partir de que idade podemos nós dizer que eles estão encaminhados?
E nós lá continuávamos convencidos que essa tarefa de ser pai ou mãe terminaria um dia.
A verdade é que eles cresceram. E nós deixámo-los, entregues ao seu destino de filhos bem encaminhados e tu, num espreguiçar indolente de dever cumprido, reformaste-te e abandonaste a cidade. Vieste para Canas onde te esperava uma vivenda com quintal onde era possível criar o tal gato. Eu, arrastada na cauda farfalhuda desse desejo, vim atrás de ti e do teu desejo bichano.
Arranjaste o gato, isso é certo. Um gato de campo, não de apartamento. Meigo e preguiçoso dentro de casa, senhor dominador do seu quintal, e dos outros à volta, sobretudo se tiverem gatas em cio. Reprodutor oficial da vizinhança, com filhos em várias casas da rua e nos matos das redondezas. Um sobrevivente nato, caçador exímio. Praticamente um leão.
E o diabo do gato, gordo e preguiçoso, estendido à janela aproveita os últimos raios de sol deste inverno da Beira que nos arrefece os ossos e conta os anos na implacável certeza do reumatismo.
Os filhos telefonam quando precisam de dinheiro. O gato mia quando tem fome. Tu passas-lhe a mão pelo lombo e sentes-te em casa. Dizes com voz de velhaco: “O gato tem fome”.
Eu olho o quadro em silêncio. Eu, menos importante do que o gato, a tratar dele como quem trata do próprio destino. Decidi o meu destino porque querias ter um gato.
A Serra ao longe reflecte os últimos raios da luz do dia. É a hora a que a neve parece ficar avermelhada. Fecho as persianas. O gato assusta-se e salta esbaforido procurando o teu colo. Tu rolas os olhos nas órbitas e murmuras com comiseração:
- “ Coitado do bicho!”


rosalinda

20 comentários:

Achadiça disse...

é com imenso gosto que publicamos este texto no mulherio. gracioso e bucólico, como a nossa terra, que, por certo, concederá a merecida quietação às suas personagens (quem sabe à autora e ao respectivo companheiro!), na companhia do desejado felino. obrigada rosalinda
B:»»

PortugaSuave disse...

Rosalinda
Ainda vais acabar em Canas, de bandeira em punho a reclamar o Concelho adiado...

Vê se apareces mais vezes, para te ambientares.

Beijoca

Achadiça
Isto está a ficar muito íntimo! :P
Veja lá, não faça nada de que se arrependa, mas se tiver que o fazer faça-o em grande. :P

Cumprimentos

Cingab disse...

:P

Achadiça disse...

Rosalinda
O seu texto discorre sobre a vida de uma forma tão terna e afectuosa que eleva Canas à categoria de vila simpática e acolhedora. Mesmo que “…arrastada na cauda farfalhuda desse desejo… bichano”, seja bem vinda e obrigada pelo excelente exercício de imaginação/criatividade. Também eu tenho problemas felinos! (sorriso).

Riça disse...

Rosalinda
A Cris e a Achadiça já disseram o essencial sobre a sua extraordinásria colaboração. Honra-nos muito a sua generosidade, abstendo-se de publicar o texto no seu berloque e cedendo-o ao Mulherio.

PortugaSuave
Congratulo-o pela amiga que tem. Quem sabe, quando ela vier instalar-se em Canas o Concelho já esteja cumprido...(venha depressa Rosalinda)
Bons repenicos

Achadiça disse...

olha olha as meninas andaram todas por cá (ainda cá estão?)

rosalinda disse...

obrigada pelas palavras simpáticas e pelo acolhimento, mas sinto-me ainda um peixe fora da água nestas coisas. continuem a encorajar-me e acabarão a pedir-me de joelhos para eu não vos dar mais 'seca'.
beijinhos.

Cingab disse...

De joelhos????
Ups!...
Rosalinda, escreva para a frente!... é sempre bom lê-la!

Maria Carvalho disse...

Belo texto sem dúvida! Obrigada pela visita às romãs e pelas palavras. Beijos.

Achadiça disse...

rosalinda
retirei do seu poema, aparentemente biográfico, que é professora de Filososfia(?). não querendo abusar da sua boa vontade seria muito pedir-lhe para discorrer filosoficamente sobre a questão que impera neste berloque - a falta de milho! caso não esteja à vontade para o efeito queira desculpar a impertinência. foi uma provocação encorajadora… como solicitou.
B:»»

Achadiça disse...

para quem gostar de poesia visite as romãs da paula raposo.

Cingab disse...

A romã é um fruto!...
Encantado por "conhecê-la"!

Achadiça disse...

rosalinda
...a falta de milho e o excesso de fruta :)

Sr. Fulano Tal disse...

Falta de milho! Isto aqui tem é milho a mais. :P

@Rosalinda
Quando é que entra para o Movimento?


Por meu cérebro vai passeando,
Tal como em seu apartamento,
Um gato de todo encantamento,
e de inaudito miado brando,

Tanto o seu timbre é o mais discreto;
Mas, se é a voz calma ou iracunda,
Ela sempre é rica e profunda:
Este é o seu encanto secreto.

E a sua voz em mim infiltro,
No meu fundo mais tenebroso,
Doce qual verso numeroso
Consoladora como um filtro,

Abranda o mal que na alma lavra,
Contendo os êxtases e as pazes;
Para dizer as longas frases
Nunca precisou da palavra.

Certo não há arco que fira
Meu coração, este excelente
Órgão e o faça nobremente
Cantar só como canta a lira,

Como esta voz, ó misterioso,
Gato seráfico e esquisito
Em que tudo é, como num rito,
Tanto sutil quanto harmonioso!


Desculpem-me (especialmente o cingab)

Cumprimentos

Riça disse...

Sr Fulano
O simbolismo de Boudelaire também nos inspira aqui no galinheiro.
Porquê as desculpas ao Cingab

Bons repenicos

PS. Não sei o que se passa com o C&S! Voltei a fazer um comentário e voltou a não aparecer. Será do sistema?

Cingab disse...

Está desculpado!...

Sr. Fulano Tal disse...

@Riça

Não sei de que se trata. Sinceramente!

Quanto às desculpas ao Cingab tem a ver com o uso de um termo tabu para ele. lol

Cumprimentos

Riça disse...

E qual é o termo, se é que também não é tabu falar do tabu?
- Movimento???

Bons repenicos

Sr. Fulano Tal disse...

Lira aka instrumento musical arcaico.

Riça disse...

Oppps!