sexta-feira, julho 28, 2006

Uma história em três actos - Acto I


Dedicada à Marta e à Matilde

O Vasco telefonou-me. Achei estranho. Nunca o tinha feito e o seu tom de voz denotava apreensão. Que estava farto, saturado e já não tinha idade para aquilo. Que o desculpasse mas precisava desabafar.
O Vasco é o namorado da minha amiga Rita. Mais velho que ela uma boa dúzia de anos, divorciou-se da Ana por pressão da Rita, que já não suportava o papel secundário de amante nem lhe eram suficientes as viagens camufladas a Paris. Orgulhosa e muito senhora de si Rita reclamou para si a exclusividade de Vasco e o seu apoio incondicional.
A Rita tem 41 anos alucinantes. Teve uma juventude atribulada. Entre desintoxicações e recaídas, esgotou o tempo de estudar e esgotaria o tempo de viver, não fosse o altruísmo do pai e uma maternidade redentora aos 32 anos. Dessa maternidade nasceu a Marta e, até hoje, nunca mais se deixou tentar pela heroína. Nove anos de abstinência. Finalmente limpa (não é bem assim, como ela diz, nunca se está verdadeiramente limpa, é um dia de cada vez…um dia a mais para a vida).
Rita, contra todas as probabilidades, não detém cicatrizes físicas daquele período. Fresca, jovem e apetitosa, mantém a energia de uma adolescente, a elegância de uma gazela e uma beleza intacta ao passar dos anos e da droga.
Teve mais uma filha, a Matilde, produto de uma relação efémera com um companheiro de circunstância, no seio de um daqueles projectos sociais de apoio a tóxico-dependentes, onde trabalhava psicologicamente a recuperação da habituação e lutava para ultrapassar a precariedade da sua existência.
Deste período, ficaram duas filhas de pais ausentes, perdidos nas vicissitudes da vida e do consumo, e uma mãe esforçada, lutando agora, não pela sua, mas pela vida da filha mais velha, à qual foi diagnosticado um tumor maligno no cérebro.
Mas Rita já estava habituada à fragilidade da vida. Não esmoreceu. Esconjurou culpas e remorsos com os quais se auto-flagelava, arregaçou as mangas e, num processo moroso e angustiante, ela e a sua menina, superaram a provação. Estabilizaram a doença.

(continua)

B~~

terça-feira, julho 25, 2006

A Língua portuguesa (com o consentimento da Riça)

Ao longo dos séculos e nas mais diversas culturas, a condição feminina foi remetida para um plano que, além de secundário, se revelou, salvo raras excepções, de humilhante submissão.
No período medieval os agentes da igreja católica, influenciados por interpretações radicais do Antigo Testamento trataram de alegorar as mulheres como origem do mal e do pecado. A procriação associada ao pecado não poupou a maternidade, pelo que um dos grandes poderes da mulher, o acto de dar vida, ficou, à luz dessa interpretação dos evangelhos, desvirtuado. O próprio e normal desejo do homem era uma tentação do diabo e a mulher o veículo dessa tentação. O seu corpo emanava impureza e o homem crente da época negava-lhe, por efeito de tal mácula, a participação nos rituais sagrados excluindo-a dos palcos canónico e secular.
Hoje, embora a equidade do género não prevaleça totalmente nos cânones da religião católica, os católicos, já não professam nem se revêem nessas interpretações. Não obstante, a língua, como veículo de conhecimento, transmissão de ideias ou assimilação de culturas, ficou impregnada de expressões ultrajantes e pejorativas que reflectem ainda o estigma transportado pelas mulheres na contemporaneidade.
Tomemos como exemplo algumas palavras e expressões da língua portuguesa:

Cão – melhor amigo do homem
Cadela – puta

Vagabundo – homem que não trabalha
Vagabunda – puta

Touro – homem a quem a mulher foi infiel ou homem forte
Vaca – puta

Aventureiro – homem que se aventura
Aventureira – puta

Menino da rua – menino pobre
Menina da rua – puta

Homem da vida – homem experiente, mundano
Mulher da vida – puta

Puto – miúdo
Puta – puta

Esta análise, em jeito de brincadeira, ilustra bem o fardo que as mulheres ainda carregam. São reminiscências linguísticas que permanecem arreigadas na nossa cultura, produto de um machismo ancestral perpetuado até aos dias de hoje.

B:»»

segunda-feira, julho 24, 2006

Convite

Ex.ma. Donadaprima

Verifiquei que nos visitou e que teve a amabilidade de deixar algumas palavras de solidariedade.
Na sua breve ausência muitas coisas se passaram: Desde a suspeição que se abateu sobre a genuinidade do género destas humildes galinhas à minha nomeação como presidente do Movimento, vimos o nosso berloque afirmar-se na berloquesfera canense, sem que para o efeito tenhamos recorrido a controvérsias apetecíveis.
Mantivemos a coerência e a sensatez; esforçámo-nos por manter vivo o objectivo de reivindicar pretensões legítimas, sem excessos nem redundâncias; elevámos a qualidade literária através dos flashes amorosos da Cristalinda, da inspiração da Riça e do contributo generoso da Rosalinda, que nos foi “apresentada” pelo amigo Portuga e que nos envaideceu com o seu último texto; consolidámos formalmente o Movimento e estabelecemos as bases programáticas que orientam e projectam este berloque para o futuro.
De acordo com as estatísticas reveladas pelo PortugaSuave já ocupamos um lugar privilegiado na preferência dos canenses, não obstante as reservas que ainda se fazem sentir por parte de alguns visitantes, amigos de ler, mas pouco dados a bicar. Não lográmos obter a adesão feminina que desejávamos, porém a perseverança é um dos atributos cá do Mulherio, não tivesse o género adquirido ao longo dos séculos a paciência, a obstinação e o optimismo garante do sucesso da espécie.
Neste contexto, como presidente do Movimento e por inerência, porta-voz deste berloque, permita-me, em nome das galinhas residentes, convidá-la a participar neste projecto. Não descurando as suas responsabilidades profissionais e “domésticas” (perdoe-me a palavra), auguro que sempre lhe restará algum do seu precioso tempo para discorrer algumas linhas sobre o que lhe aprouver. Se a vontade lhe assistir e a disponibilidade prevalecer, ficaremos gratas pela generosidade do seu contributo.
Se estiver familiarizada com a estrutura dos berloques basta enviar-nos o seu endereço de email. Nós, através de convite, disponibilizaremos um link que lhe permitirá aceder directamente à plataforma das “posturas”. Caso tenha dificuldades nestes trâmites digitais, pode enviar os seus textos para galinha-rica@clix.pt, que eu sentir-me-ei muita honrada em publicá-los.

Com consideração e simpatia, a Presidente Achadiça.

Figueira do Leite, 24 de Julho de 2006

quarta-feira, julho 19, 2006

A possível história do gato

Cristalinda espero que me perdoe a usurpação da ideia. Ao ler o seu texto “Os telemóveis são uma chatice”, ocorreu-me escrever algo que pudesse entroncar no seu breve desabafo. Espero que goste e que o publique no vosso “berloque” se for esse o entendimento. Beijos. Rosalinda.


*****

Vivíamos na cidade. Cada um no seu apartamento. Em nenhum deles havia uma varanda, nem sequer um simples metro quadrado, para onde se abrisse uma porta e pudesse estar de imediato ao ar livre, sem sair de casa.
Claro que acabávamos sempre em conversas acerca de viver numa casa com quintal, assim, do tipo campo, sobretudo um espaço onde se pudesse criar um gato.
O que tu gostavas realmente era de ter um gato. Mas não um gato maricas de apartamento. Isso é a pior coisa que se pode fazer a um gato – dizias tu, mesmo a sério.
Eu tinha a nostalgia de uma casa com quintal e flores e crianças a correrem à volta, tal como vivêramos na infância. E uma lareira com porta directa para o ar frio da noite e para as surpresas costumadas do quintal.
Em vez disso, tínhamos casas em que os nossos filhos estavam mais ou menos enjaulados. Os teus passavam contigo um fim de semana por quinzena. Os meus viviam comigo a semana inteira.
Quando chegava o teu fim de semana, íamos todos para o teu apartamento e, pelo menos na noite de sexta para sábado, os teus cruzavam-se com os meus e lá foram aprendendo a gostar uns dos outros. Os teus, os meus. A nenhum podíamos chamar ‘o nosso’, mas eram todos nossos. Ás vezes vinham outros filhos com outros pais de fim de semana, ou outras mães, em fim de semana ou a tempo inteiro.
Estas novas formas de família podem transformar as nossas vidas num inferno, sobretudo quando somos ainda campónios na alma e a memória da nossa infância não se reconhece no presente dos nossos filhos.
Refugíamo-nos na possibilidade de regressar quando nos reformarmos e nos tivermos libertado das ralações com os filhos. Vê-los arrumados, não há ideia que reconforte mais o coração dos pais. Bem, arrumados não digo, mas pelo menos, encaminhados, assim p´rá idade do Raul que está a sair todo direitinho – respondes tu, esperançado que os mais novos sigam os moldes do primeiro que, ao contrário do que seria fácil de prever, tinha saído um miúdo ‘super-atinado’.
- Meu amor, os filhos nunca deixam de ser uma preocupação.
- Está bem. Mas vê-los bem encaminhados pelo menos.
- Bem encaminhados! Meu pobre amor. A partir de que idade podemos nós dizer que eles estão encaminhados?
E nós lá continuávamos convencidos que essa tarefa de ser pai ou mãe terminaria um dia.
A verdade é que eles cresceram. E nós deixámo-los, entregues ao seu destino de filhos bem encaminhados e tu, num espreguiçar indolente de dever cumprido, reformaste-te e abandonaste a cidade. Vieste para Canas onde te esperava uma vivenda com quintal onde era possível criar o tal gato. Eu, arrastada na cauda farfalhuda desse desejo, vim atrás de ti e do teu desejo bichano.
Arranjaste o gato, isso é certo. Um gato de campo, não de apartamento. Meigo e preguiçoso dentro de casa, senhor dominador do seu quintal, e dos outros à volta, sobretudo se tiverem gatas em cio. Reprodutor oficial da vizinhança, com filhos em várias casas da rua e nos matos das redondezas. Um sobrevivente nato, caçador exímio. Praticamente um leão.
E o diabo do gato, gordo e preguiçoso, estendido à janela aproveita os últimos raios de sol deste inverno da Beira que nos arrefece os ossos e conta os anos na implacável certeza do reumatismo.
Os filhos telefonam quando precisam de dinheiro. O gato mia quando tem fome. Tu passas-lhe a mão pelo lombo e sentes-te em casa. Dizes com voz de velhaco: “O gato tem fome”.
Eu olho o quadro em silêncio. Eu, menos importante do que o gato, a tratar dele como quem trata do próprio destino. Decidi o meu destino porque querias ter um gato.
A Serra ao longe reflecte os últimos raios da luz do dia. É a hora a que a neve parece ficar avermelhada. Fecho as persianas. O gato assusta-se e salta esbaforido procurando o teu colo. Tu rolas os olhos nas órbitas e murmuras com comiseração:
- “ Coitado do bicho!”


rosalinda

terça-feira, julho 18, 2006

Doméstico

Ontem consegui convencer o meu juvenal a comprar uma máquina de lavar louça. Linha branca, económica e baratinha (250 eiróses), pois o senhor meu homem, para jantar fora, para o carro e para os copos nunca lhe ocorrem poupanças, agora quando toca a investir em gastos que não o afectam directamente, faz um ar de contrariado, muito perto da birra e assaltam-lhe logo tremores e indisposições. Isto quando não lhe dá para ironias machistas do género “o melhor electrodoméstico do mundo é a mulher”.
Tivesse ele que lavar a louça, tarefa que, por mais compromissos domésticos negociados, nunca consegui que ele cumprisse com a assiduidade por mim desejada, teríamos uma Boch topo de gama, com 30 programas, computador de bordo e outras mariquices electrónicas que fazem a delícia dos homens... mas como sou eu que vou trabalhar com ela, chegam dois botõesinhos, on e off, “não vás tu confundir-te com tanto comutador”... diz-me ele insistindo na ironia e conhecedor da minha inépcia para tudo o que é aparelho electrónico. Ainda lhe respondo que on e off são as parcas possibilidades do cérebro masculino, que se reduzem a dois solitários neurónios, mais vocacionados para o off do que para o on, mas acabei por condescender e lá encomendámos a humilde maquineta.
Agora precisamos de anti-calcário, detergente e abrilhantador. O que eu fui dizer! Soltou logo urros de indignação e imprecações várias. Começou a fazer contas de cabeça... água, electricidade, material... um balúrdio.
Pois é, um balúrdio o que andamos a poupar há não sei quantos anos à minha conta... depois fui mazinha - sabes quanto custa cada boião de creme protector e regenerador das mãos que uso, por via de lavar a louça à mão e de maneira a amaciar-te delicadamente o pelo sem asperezas? Provavelmente ainda poupamos dinheiro com a aquisição - e não é que queria saber o preço do creme! Desatei a rir deixando-o ainda mais apreensivo quanto ao preço do lancôme.
Eu gosto do meu juvenal, mas há coisas que nem a mulher mais apaixonada do mundo entende. Irritado com este “esbanjar de dinheiro”, como ele diz, arremeteu intrépido a uma loja fina da especialidade e arrematou 2 pares de cuecas e 4 pares de meias pretas por 60 eiróses. 60 eiróses de roupa interior de marca, ele que habitualmente a adquire por atacado, indistinta nos repositores de supermercado.
Estou a pensar contar-lhe quanto custou aquela lingerie que ele gosta muito... só por vingançazinha amorosa. Quanto ao creme é melhor ficar calada.
B:»»

Criptogâmico (reflexão sobre o sexo dos anjos)

Aprimorei-me para o jantar. Não é todos os dias que se é convidada para jantar fora!
Optei por um vestido em detrimento das habituais calças de ganga. Entre hesitações e consultas ao espelho lá descortinei o clássico vestido preto com o qual nunca me comprometo. Curioso! Estou mais magra. Na impossibilidade de o vestido ter alargado e descrente na teimosia da balança electrónica, que calcula constantemente números pouco credíveis (por certo não se dá bem com as humidades próprias da casa de banho), lá fui, confiante do êxito da malfadada dieta, que me refreia prazeres gastronómicos atrevidos e me deixa na boca salivas indesejáveis.
Perante o facto, senti-me descomprometida na escolha da ementa - hoje vou comer o que me apetecer, sem subterfúgios nem receios - o que eu queria mesmo era um arroz de míscaros, mas não estamos na época e mesmo se estivéssemos, provavelmente não fariam parte do menu, pois tais fungos já não fungam como fungavam antigamente. Pelo menos na quantidade de outrora.
Ainda me lembro dos passeios às matas vizinhas remexendo musgos e carumas na certeza do almoço que, de regresso, a minha avó materna preparava cuidadosamente, não fosse a neta confundir os cogumelos sãos com outros impróprios e acabarmos todos liquefeitos na casa de banho. Também colhia sanchas(?), uns cogumelos cor de laranja que, embora comestíveis, eram perigosos se tivessem verdete. Estes eram objecto de um tratamento especial, receita ancestral. Consistia em fritá-los juntamente com uma colher de metal. A característica do metal atraía os possíveis resquícios de verdete, que por efeito do calor se separava dos filamentos interiores da sancha. De quando em vez encontrava uma variedade da qual desconheço o nome técnico, mas muito apreciada. Esbranquiçados e sarapintados de castanho, apresentavam, quando novos, o chapéu ainda fechado sobre si próprio sob a forma de bolbo; quando feitos, um chapéu largo com uma profusão de castanho superior ao branco; o seu caule alto e branco possuía um anel gracioso também acastanhado. Eram óptimos, fritos ou grelhados só com uma pitada de sal (eu conheço-os simplesmente por tortulhos).
Dou comigo a falar no passado como se já não houvessem tais acepipes. Claro que ainda os há. Eu é que não tenho nenhuma neta que os vá desencantar.
Bem… vou ficar pelo cabrito assado, que me sinto magra. Bom apetite e bons repenicos.

segunda-feira, julho 17, 2006

Sem retorno

Encontrei-o esquálido, andrajoso, absorto de palavras. Tantos anos sem o ver! O meu príncipe das marés, o meu Romeu galanteador, comensal da minha boca adolescente, povoador dos meus sonhos mais ousados. O meu cigano kusturica.
Agora, angustia-me a alma no seu alheamento, disfarçando recordações, como se indigno das nossas memórias.

Não fiz qualquer referência ao passado, ao nosso passado.
- Casaste?
- Não.
- Ainda estás no Algarve?
- Hum hum.
- Estás bem?
- Hum hum.
Desisti. Apetecia-me acarinhá-lo, levá-lo comigo para recantos antigos, alinhavar-lhe a alma, bordar-lhe o corpo, cumprir promessas antigas eternamente adiadas, como os versos inacabados em que era profícuo.
Afastei-me do Kebra e da insuportável promiscuidade de corpos em combustão carnavalesca. Entrei no carro. Rumei incerta tentando pensar o menos possível. Em vão. Meu Deus, nem um beijo nos demos.
O que fazemos nós do tempo, o que o tempo faz de nós!
Despejo-te inteirinho fora de mim, que me magoas acabado. Adeus.

sexta-feira, julho 14, 2006

Crónicas da Galinha Riça - O Pasquim

Quando o padre Ilídio solicitou a generosidade dos paroquianos para, de cima do púlpito, divulgarem a palavra do Senhor, estava longe de imaginar a dificuldade patenteada pelos crentes na leitura das Sagradas Escrituras. A leitura negligenciava a pontuação, eivada de pausas inadequadas e atropelos linguísticos e, salmos e epístolas, já por si de interpretação avessa, chegavam à plateia ininteligíveis ou, na pior das hipóteses, próximos da heresia. Até foi afirmado, por via de leitura pouco escorreita, que as mulheres deveriam ser omissas perante o próprio marido. Logo, algumas devotas mais atentas e esperançadas nesta nova interpretação, questionaram quais as circunstâncias e em que moldes poderiam ser omissas ao esposo. Insurgiram-se os maridos e ficou confundido o padre, que não se apercebeu da adulteração da frase. Porém tudo ficou esclarecido perante a rectificação atempada – não é omissas é submissas. “Mulheres, sede vós, submissas a vosso próprio marido”, assim é que é, Pedro, Cap3.:Vers.1. Desiludiram-se as mulheres, desassombraram-se os homens; preocupação redobrada… a do padre, está bem de ver.
Ora, não sofrendo os seus acólitos de problemas oftalmológicos ou neurológicos conhecidos, tal dislexia só poderia ter origem na ausência de hábitos de leitura.
Preocupado com o elevado nível de iliteracia verificado nas homilias domingueiras e temente das possibilidades agnósticas que tais interpretações poderiam originar, decidiu alertar os responsáveis da escola secundária cá da paróquia para esta situação. Pelo menos assegurar que as gerações futuras não desvirtuassem os dizeres bíblicos… pensava o padre enquanto aguardava pelo presidente do executivo.
Foi recebido com sorrisos cerimoniosos, mas que rapidamente se crisparam perante as preocupações confidenciadas pelo clérigo. O presidente explicou que, de acordo com as novas directrizes do ministério, a actual vertente pedagógica estava mais vocacionada para as áreas científicas do que para as culturais. Homem de vastos recursos, ainda sugeriu que, se fosse possível escrever os textos sagrados em código html, os futuros paroquianos estariam suficientemente aptos para os interpretar e transmitir correctamente; agora relativamente ao português, escrito e falado, nem com ajuda do divino Espírito Santo na sua bênção poliglota do Pentecostes. Que lhe perdoasse a franqueza.
O sacerdote saiu do gabinete inconformado e com a ligeira sensação de que tinha sido alvo de chacota, mas não desistiu. Renitente na sua saga pela defesa da integridade literária da Bíblia e identificado o cerne do problema urgia agora encontrar uma solução que motivasse hábitos de leitura nos seus fiéis.
Foi assim que, após congregar alguns colaboradores mais letrados, não fosse a emenda ser pior que o soneto, concebeu a excelente ideia de criar um jornal que abarcasse assuntos de interesse social e cultural relacionados com a paróquia - o Jornal Canas de Senhorim, de seu nome.
Deve-se ao padre Ilídio, ainda desconhecedor que o esperavam outros desígnios eclesiásticos bem mais importantes que a educação literária dos nossos conterrâneos, o legado do pasquim cá da terra que, na sua existência, já assegurou as pontes necessárias para alcançar as margens do conhecimento e ultrapassar o rio do analfabetismo.
Dêem graças à sua existência e contribuam para a sua perenidade. Enriqueçam o espírito e a arte oratória com a sua leitura, pois nunca se sabe quando serão chamados ao púlpito ler as Sagradas Escrituras.
Bons repenicos

segunda-feira, julho 10, 2006

Aniversário

Hoje o meu pai fez 75 anos. Telefonei-lhe. O resto correu...
Tenho medo de perder a noção do tempo, de não ver a diferença...
Hoje marquei finalmente consulta num psiquiatra
Tenho 38 anos. Não conheço a minha máscara
Já tomei decisões difíceis, realizei, filosofei
Chorei
Como todas as histórias, esta também tem um começo.
Sempre tive o vício de procurar justificação para as coisas
Coisas simples como ir ao psiquiatra, sim,
Ou como ir à Fnac e sair de lá com ‘Mais Platão menos prozac’
Num daqueles sacos tipo ‘eu consumo cultura’...
De repente lembro-me que me pagam há 15 anos
Para ensinar filosofia
E não pagam o suficiente para livros
que servem apenas para me lembrar que essa terapia já a faço há anos.
Vou ao psiquiatra
É a minha primeira vez!
De repente lembro-me da justificação...
‘então diga lá, porque vem cá’, ou outra coisa qualquer
e percebo que é por não o saber que lá estou
assalta-me então o terror do discurso
tenho de ser coerente, cuidadosa, senão ele pensa que sou completamente louca
e receita-me ‘incapacidade total para gerir a minha vida’
ou acha-me suficientemente equilibrada e não me leva a sério.
Entre uma coisa e outra , uma profusão de medos e memórias
38 anos, dum extremo ao outro
da incerteza, à natureza morta no canto da lareira
do inesperado, à triste certeza de que nem sempre o que é esperado acontece
entre a fé e a força das apostas difíceis
e o fascínio dos abismos fáceis.
Quer que lhe faça um relatório? De quanto tempo é que disponho?
Falo-lhe desde quando?
da primeira vez que tive medo, da iniciação sexual, da estudante temerária
activista sindical, grevista (deixei-me disso),
profissional do ensino português há quinze anos.
Aviso-o já que não tenho dinheiro para muitas consultas
Se quiser salto já para o ensino e você diagnostica ‘esgotamento’
Sabe, mas eu gostava de ser levada mais a sério.
Fiz dois filhos. Um sobreviveu.
Fiz uma casa, várias... foram-se.
Casamento, divórcio, a perda, pouco dinheiro...
Já deve ter percebido porque é que eu marquei a consulta.
Porque o meu pai fez hoje 75 anos e está mais vivo do que eu.

rosalinda

Presidência do MRMCS

Tomou posse do cargo de Presidente do Movimento Reivindicativo das Mulheres de Canas de Senhorim (MRMCS), no pretérito dia 08 de Julho de 2006 (dia de má memória), a Achadiça do Freixieiro.
A cerimónia teve lugar no Restaurante (?) e nela estiveram presentes as suas colaboradoras mais próximas, Professora Doutora Galinha Riça e a Dr. Cristalinda, bem como outras entidades circunstanciais. O seu mandato terminará dia 08 de Julho de 2007.

Portugal 1-2 Itália

Sempre gostei de italianos... a língua adocicada, desinteressadamente cantada, a máfia romantizada do Coppola, a aculturação clássica da Grécia antiga, o quão são parecidos connosco, o Mediterrâneo tangencial, o azul, os homens... ai os homens, a Lira e as liras que já não o são, os euros que são tão caros em Roma. Itália felliniana, romanesca, bella e doce... e feia e porca no fascínio cinematográfico, feita de caminhos de pedra, graníticos na eternidade da memória, expressão de um povo fantástico, seguro no percurso supremo do império ocidental e volátil nos escombros perdidos da história.
Gostei deste César renascido - quase inconcebível nos meandros da contemporaneidade.

Bons repenicos

quarta-feira, julho 05, 2006

Mulherio, um berloque com pouco movimento

Como sabem “O Mulherio” foi criado, não só como veículo reivindicativo das mulheres de Canas de Senhorim perante negligências já sobejamente apontadas, mas também como impulsionador da participação feminina no universo dos berloques.
Quando dei os primeiros passos pela berloquesfera canense verifiquei que os elementos que habitualmente participavam eram na sua maioria, senão exclusivamente, do sexo masculino. Claro que havia e creio ainda haver algumas pitinhas que espreguiçam as suas hormonas na languidez de pretensas tiradas poéticas, espremendo esporadicamente o acne para cima das teclas do computador com melancolias metafóricas em segunda mão. Eu, que gosto de poesia mas que sou avessa a poemas às florzinhas, fiquei logo entusiasmada quando a Riça e a Cris me incentivaram e propuseram criar um berloque assumidamente feminino, que transmitisse alguma frescura e impertinência ao panorama vigente e que fosse cumulativamente adulto, mordaz, atrevido e ligeiro. Julgámos possível angariar adeptas e adeptos para a brincadeira e aproveitar outros géneros e sensibilidades literárias.
Com muita pena nossa não conseguimos que a ideia vingasse. As mulheres que julgámos poderem enriquecer este berloque não apareceram e a possibilidade de convidar directamente amigas para colaboradoras comprometia o anonimato e confidencialidade que entre nós foram acordados.
Porém este facto não nos demove. Apenas lamentamos que assim seja.
Assim, lançamos o repto às visitantes d’ O Mulherio (se as houver) no sentido de colaborarem com textos sobre o que vos aprouver. Para o efeito o sistema assegura o anonimato através de um convite para a vossa caixa-correio a partir do qual, através de um simples registo, têm acesso restrito e confidencial ao berloque, sob o compromisso de prevalecer o bom senso nos textos apresentados. Também podem enviar os textos devidamente identificados por uma alcunha para galinha-rica@clix.pt.
Aos homens que nos visitam pedimos que incentivem as vossa mulheres ou namoradas a participar e colaborar neste ou noutros berloques. Seria atraente, simpático e construtivo Canas de Senhorim ter vozes femininas activas neste universo.
Colaborem, pois a possibilidade de termos um berloque feminino efectivamente participado depende muito de vocês. Nós esforçamo-nos. Faltava somente recorrer ao apelo directo, algo que a Cris e a Riça desde o início recusaram, mas que perante a recente reorganização política d’ O Galinheiro se viram obrigadas a aceitar.

Bom jogo e que Portugal ganhe.
B:»

terça-feira, julho 04, 2006

Mensagem da candidata vencedora à presidência do MRMCS

Como candidata vencedora à presidência deste galinheiro (ainda não tomei posse), cargo que me foi conferido democraticamente por maioria absoluta, quero saudar as restantes candidatas pela demonstração inequívoca de um verdadeiro espírito de camaradagem. Saúdo-as por não terem caído na tentação fácil de usar este espaço como veículo de propaganda pessoal ou demagógica.
Quero agradecer igualmente a todos os participantes que permitiram que esta humilde galinha, nada e criada em lameiros pouco elitistas, lograsse alcançar a presidência do MRMCS - a todos e a todas muito obrigada.
Por fim aproveito para reforçar a ideia que serviu de mote à criação deste berloque - apelar a todas as mulheres de Canas de Senhorim uma participação mais activa na vida social e política do Quintal, exercendo o seu direito de cidadania com o mesmo empenho aparentemente demonstrado pelos homens e conscientes da importância das reivindicações entretanto assumidas.
Adiram a este berloque. Só com a vossa participação poderemos inverter o machismo Beirão.
Viva o Quintal, viva Portugal.
B:»

Fumo branco na Figueira do Leite

Chegou ao fim o prazo previamente definido para a eleição da presidente do MRMCS (Movimento Reivindicativo do Mulherio de Canas de Senhorim).
Uma breve análise ao universo dos eleitores confirma as reservas da Riça aquando da implementação deste método (supostamente democrático) de eleição. A maioria dos votantes é do sexo masculino, factor que, segundo declarações das outras candidatas e até da própria vencedora, poderá ter influenciado a tendência de voto. Será único este Movimento, que se quer reivindicativo e do mulherio e cuja presidente foi eleita exclusivamente por homens. Seja o que Deus quiser.
Sendo ponto de honra para as três candidatas acatar os resultados da auscultação e não sendo possível decretar um sistema de quotas que permitisse uma justa distribuição do género dos eleitores, ratificamos por unanimidade os resultados que se seguem:

Achadiça – 27 votos
Cristalinda – 15 votos
Galinha Riça – 6 votos


De acordo com os estatutos aprovados pela em assembleia-geral, a Comissão Instaladora do MRMCS determina:

1. O MRMCS (Movimento Reivindicativo do Mulherio de Canas de Senhorim) é um movimento de carácter presidencialista, pelo que os poderes executivo e legislativo serão centralizados na presidente;

2. É confirmada para o exercício da presidência do MRMCS a Achadiça, cargo do qual tomará posse em cerimónia oficial a realizar no Restaurante Póvoa Dão em dia a acordar;

3. O período de vigência do cargo para que foi eleita será de um ano a contar da data de nomeação;

4. A presidente compromete-se a respeitar e fazer respeitar os princípios que constam do Código de Honra elaborado para o efeito, bem como empenhar-se na consolidação da génese reivindicativa que norteia o Movimento;

5. As restantes candidatas assumem, sob compromisso de honra, participar activamente nas posturas e acatarem as disposições da presidente de acordo com o ponto 6.;

6. Compete às restantes candidatas o exercício fiscalizador da presidência. Qualquer comportamento desviante deverá ser avaliado por referendo, proposto a votação aos visitantes deste Galinheiro e confirmado por 2/3 dos votantes. Se não se verificar a maioria qualificada de 2/3 na confirmação do acto referendado a presidente pode retratar-se e manter o cargo ou, caso contrário, abdicar das funções para que foi eleita. No caso da votação lhe ser favorável (atingir a maioria qualificada de 2/3 dos votos) devem os restantes elementos acatar incondicionalmente essa decisão.

7. Qualquer caso omisso que se verifique no decorrer do mandato será decidido por maioria qualificada interna. Neste caso só os três elementos deste Galinheiro serão chamados a pronunciar-se.

A Comissão Instaladora do MRMCS, Figueira do Leite, 30 de Junho de 2006

segunda-feira, julho 03, 2006

Os telemóveis são uma chatice!

De repente, o som abafado do telemóvel, faz-me regressar à realidade. A esta hora? É muito cedo para que sejas tu.
Atabalhoadamente mergulho no saco e no meio de todas aquelas coisas imprescindíveis que só servem para nos dificultar a vida quando queremos encontrar qualquer coisa, à procura do telemóvel em chamas.
Por incrível que pareça, desta vez encontro-o sem dificuldades. E logo o teu nome brilha luminoso, ainda dentro do saco, emergindo das profundezas da noite em que te perderas.
Atendo e ouço a tua voz ainda um pouco estremunhada, mas mais desperta do que o costume. É provável que as tuas palavras não fossem estas, pois ouvi-as em formato telemóvel e só posso reproduzir o que julguei ouvir. A voz era agradável e eu estava ansiosa.
- Querida! Estás bem disposta?
- Estou.
- Desculpa não te ter telefonado, mas, olha, nem sei bem onde fica isto (perguntas alguma coisa a alguém que está contigo). Olha estou em casa da C., imagina tu. Vou-me levantar agora e... sabes que temos o jantar mais logo à noite...
- Sim e depois... (respondi qualquer coisa no género).
- Ó pá, estou a ficar sem bateria...piiiiiiiiiiiiiii.
E fiquei na mesma. Sem saber nada de importante, com a agravante de agora estares agarrado nas entrelinhas do que eu ia escrever. Que era sobre um gato. E também tinha a ver contigo, mas referia-se a outro dia. Sobre hoje não me apetecia pensar.
De que me adianta pensar que és um gato vadio e pulguento, se depois te aliso o pelo e arranco as carraças com cremes caros, e gestos medrosos, não vás tu distraidamente espreguiçar uma garra e arranhar-me na pele a memória dos gestos vadios que eu quero esquecer.
Vês? Ficaste-me nas entrelinhas. Deixaste-me a falar sozinha. Isso é muito feio e ainda será pior se tornar tudo isto numa história muito enfadonha.
Foi aborrecido, de facto, eu não ter escrito o meu conto sobre o gato, um gato verdadeiramente doméstico, e que era suposto ser cheio de ironia. E, em vez disso, ter ficado ainda mais inquieta. Os telemóveis são uma chatice.
Mas já agora, deixa que te diga: Chato, mesmo, foi não teres vindo dormir a casa!.

B~~