quinta-feira, setembro 06, 2007

Relatório de Bordo - Parte 2


Acomodado o puto, parece que é agora que vamos ter um pouco de paz. Mas não. O avião atravessa uma zona instável, com abanões e perdas súbitas de altitude. Uma agitação nos assentos de trás faz-nos olhar instintivamente sobre o ombro. Um senhor de meia-idade sentiu-se indisposto, saltou-lhe o jorro da indisposição e agoniza perante o incómodo geral. Gera-se a confusão com as pessoas a quererem levantar-se, as assistentes de bordo a dizer que não, que têm que manter os cintos apertados, pois estamos a sobrevoar uma zona de poços de ar, o cheiro a vomitado a entrar-nos directamente para a garganta, alguém que não resiste ao fedor nauseabundo e cede também ao refluxo, mais um que vai ao gregório. Os terroristas do vómito tomam conta do aparelho, multiplicam-se as ameaças e é ver a equipa de bordo, autêntica cruz-vermelha, acudindo vítimas e terroristas. Mais um abanão seguido de uma queda abrupta e a assistente estatela-se no colo de um casal de idosos, sem grandes consequências a não ser a mãozinha atrevida do velhote que apoiou a hospedeira por onde podia, ainda que, anatomicamente, não fosse o local mais conveniente. Ossos do ofício dir-se-ia, se não fosse o caso da ocorrência não corresponder exactamente ao sugerido na expressão.
Todos aos seus lugares aconselha o comissário de bordo. Os passageiros serão atendidos quando as condições de voo permitirem. O avião estabiliza. Seria altura para respirar fundo e manter a calma, mas respirar fundo naquele antro nem pensar, por isso ficamos pela serenidade possível, engole-se em seco e, se possível, distraímo-nos com o vaivém dos assistentes. Verdadeiros profissionais do vómito, continuam com aquele sorriso plástico, mesmo perante salpicos e odores insuportáveis. Como conseguirão? A que raio de treino serão sujeitos para lidarem com estes bombistas da vomição sempre de sorriso sedutor nos lábios? Nem quero pensar. Lá vem o carrinho de limpeza, os sais, as águas minerais, mais as oportunas máscaras, apesar de insuficientes para os braços prementes que por elas reclamam. Perspicaz, o comissário de bordo impõe prioridades criteriosas baseadas no seu olhar experiente, primeiro os passageiros cujo tom de pele já vai a caminho do branco, não vá isto descambar e acabarmos todos mergulhados num vómito colectivo. Não é à toa que se chega a comissário.
Ladys and gentlemens… aquela lenga-lenga do costume, já passámos o período de maior turbulência, podem desapertar os cintos. Uff, respiramos de alívio, pois já temos vindo a reprimir a bexiga há um bom tempo ou, no caso dos enjoados, a privacidade da casa de banho sempre trará alguma dignidade à premência do vómito. Mas qual quê, do mesmo mal vêm padecendo todos os passageiros, de maneira que é um ver se te avias para chegar às extremidades da aeronave, atropelos, roça-roça, apertos que o estreito corredor torna inevitáveis, anca com colo, braguilha com rabo, hálito com hálito, o nariz dela no sovaco dele, o cinto dele que prende na blusa dela, o embaraço da situação, de nada vale puxar, só uma dança cuidada, quase sensual, desprende os involuntários amantes, bem, uma autêntica concupiscência, se não soubéssemos que esta gente, embora corra por apelo do corpo, a urgência é de ordem incontinente e nada aponta para que apertos de outra natureza se hajam cumprido.
Mastiga-se mais uma vez aquela comida inqualificável (para quem não sabe aquela miserável ração custa cerca de 35€, peçam uma factura detalhada nos balcões da companhia e verifiquem) e, por fim, o comandante cheio de enfado, num inglês quase incompreensível, lá se digna comunicar que aterraremos dentro de vinte minutos, céu limpo, temperatura exterior 30º, espero que tenham feito uma boa viagem, a companhia agradece a preferência.
Fosga-se. E eu que até nem tenho medo de andar de avião.

1 comentário:

Cristalinda disse...

Cingab, Cingab...
Pensava que se tinha zangado connosco. Cá o temos de volta (ao que parece também em força) mais os seus preciosos lol.
bye