quinta-feira, setembro 06, 2007

Relatório de Bordo - Parte 1


As longas viagens de avião são uma autêntica tortura. Masoquistas repetentes é o que nós somos, que nos sujeitamos a troco de umas férias fugazes a este martírio, e pagamos bem caro o massacre.
Nestas viagens encontra-se sempre alguém disponível para nos contar a sua vida, por vezes de forma despudorada e quase sempre inconveniente. Apanham-nos ali, atados ao cinto da turbulência, presos ao confessionário, mais perto de Deus, para o melhor e para o pior, como me disse uma vez uma atemorizada senhora numa viagem ligeiramente atribulada, e relatam-nos em voz íntima os casos mais tórridos da sua existência ou, pior ainda, as circunstâncias da morte do ente querido que vão a enterrar na escala de destino. Nem o livro aberto à nossa frente os detém. Aliás, já percebi que o raio do livro em vez de os desencorajar serve de motivo de conversa. Ou porque já leram, ou porque conhecem o autor, ou, embora não conheçam, gostavam de conhecer, enfim, um plano de voo recheado de recursos e astúcia na aproximação ao terreno. O importante é meter conversa, a partir daí já ninguém os segura e, quando damos conta, já estão a falar dos filhos, das netas, da ex-mulher, do raio que os parta.
Mas, ainda pior, é quando nos calha a criancinha irrequieta mais o som horrível do game-boy e o puzzle espalhado pelo nosso colo, puzzle que a hospedeira em desespero de causa providenciou mas que o melga eficazmente subverteu atirando as pequenas peças pelo ar. Lá vem o pai da criança reparar o irreparável, desculpar o indesculpável, quando a única atitude meritória era um valente tabefe no focinho, mas não pode ser, agora os monstrinhos têm que ser preservados desses correctivos para crescerem monstros capazes, não vá por ali estar um desses pedagogos legalistas defensores dos direitos à monstruosidade para acusar o desgraçado pai de violência infantil. Em vez do tabefe, o conformado progenitor debruça-se sobre mim, de cu para o ar, braços por entre as minhas pernas, cabeça colada aos meus joelhos, tentando recuperar o puzzle perdido. Raios, quem nos visse de soslaio juraria que ele estava a fazer outra coisa.
Como se não bastasse, depois de muito espernear, de nos ter entornado a coca-cola por cima e de nos ter enchido de migalhas e açúcar, adormece de tédio no nosso ombro sobre o olhar embevecido do pai ao qual não temos a coragem de negar o repouso do pirralho. Deixe estar, dizemos simpáticos, não incomoda nada, quando lá no fundo, a bem da verdade, só nos apetece é despressurizá-lo.
(continua)

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