Levava o passo estugado. Ia fazer compras à mãe e matraqueava interiormente o rol de aquisições – 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar, 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar. Se fosse a correr, talvez conseguisse tempo para dar uma perninha no adro da igreja – 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar, 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar.
Chegou ofegante mas de pouco lhe serviu o esforço. Ninguém à vista lá no sítio costumeiro, onde, entre golos, fintas e caneladas, se prestava a contrariar as recomendações maternas. Tinha 10 minutos de divertimento e nada para fazer deles.
Estampou-se-lhe o sorriso na face ao ver surgir, não os companheiros do adro, mas, vinda em idêntico recado, a avaliar pela caderneta de fiado, a Zeca do Lívio, toda de mansinho, numa eternidade de aproximação. O que fazer? Entrar ou não entrar no estabelecimento... se entrasse não se sentiria à vontade para falar com ela e o mais provável era ficarem por um cumprimento seco, como os 10 papo-secos encomendados – 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar; se não entrasse como iria justificar a sua inquieta presença ali no umbral da porta. Raios, que já lhe adivinhava a gozação – olha que a porta não cai - ou ainda pior, - às compras à mamã! - ou então, muito pior, a indiferença do costume. Estes pensamentos corriam-lhe vertiginosos e o embaraço crescia na proporção contrária à distância que o separava do inesperado encontro.
Zeca era moça despachada mas insensível aos atrevimentos dos rapazes, mesmo dos mais velhos. Já não era menina. A meninice tinha-lhe escapado no desconforto de um socalco de vinha em fim de Verão. Tarefeira ocasional, perdeu a curiosidade junto a cepa de videira anciã, vindima do fruto e do corpo. Não ficaram boas recordações dessa iniciação e, talvez por isso, a incomodassem os rapazes e os namoros.
Mas destas coisas não sabia o rapaz, que a julgava tão menina como as outras. Com ela sempre reprimiu fantasias ousadas e os próprios sonhos recusavam-se a colaborar com o desejo despontado.
Pressentiu-a. Levantou com dificuldade os olhos e esboçou um sorriso patético. Ela tomou consciência dele e, ligeira, subiu o degrau que antecedia a porta do estabelecimento. Hesitou. Virou-se devagar, olhou-o acintosa e disse:
– Tenho uma coisa para te contar. Espera-me no chafariz.
Nunca o tempo correu tão desacertado. A ânsia e o pânico apoderaram-se dele transformando aqueles breves minutos num desassossego aflitivo. Valeu-lhe a consolo da água ali à mão para acalmar o nervoso miudinho. Sentou-se no banco de pedra que existia nas traseiras do fontanário e serenou o que podia - 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar.
Ela chegou e contou:
– A minha prima de Lisboa pediu-me para te dizer que gosta de ti e que te desse um beijo por ela.
Ficaram silenciosos. Ela expectante. Ele especado.
– Não dizes nada- perguntou ela.
O rapaz remoeu silêncios - um beijo da prima! Eu não suporto a prima - pensou meio desiludido.
– Bem, toma lá um beijo que tenho de me ir embora.
Ele cedeu a face, triste e inconformado. Fosse por interior insatisfação, descontrolo emocional ou afoiteza irreflectida, não resistiu à aproximação dos lábios dela. Num gesto arrojado rodou ligeiramente a cara e beijou-a nos lábios. Afastou-se rapidamente e aguardou a estalada, não conhecesse ele a má vontade da rapariga para com estas liberdades.
Contra todas as suposições, Zeca arrumou traumas passados e, num arroubo de paixão reencontrada, agarrou os cabelos do rapaz e beijou-o longamente. Respirou, voltou a beijá-lo e afastou-se, sem olhar para trás.
O rapaz nunca tinha sido beijado. Tinha lido muito sobre este e outros assuntos complementares, mas desconhecia por completo o sabor e a textura de um beijo.
Demorou a digerir emoções e recuperou a placidez com dificuldade. Ainda incrédulo por tamanha dádiva, dirigiu-se mais calmo ao estabelecimento e pediu aquilo de que vinha a mando.
A mãe ainda hoje conta a história daquela vez em que o mandou comprar 10 papo-secos, uma broa e dois quilos de açúcar e ele apareceu com um saco enorme de açúcar e dois miseráveis papo-secos:
– Foi jogar à bola para o adro da igreja e baralhou tudo!
Chegou ofegante mas de pouco lhe serviu o esforço. Ninguém à vista lá no sítio costumeiro, onde, entre golos, fintas e caneladas, se prestava a contrariar as recomendações maternas. Tinha 10 minutos de divertimento e nada para fazer deles.
Estampou-se-lhe o sorriso na face ao ver surgir, não os companheiros do adro, mas, vinda em idêntico recado, a avaliar pela caderneta de fiado, a Zeca do Lívio, toda de mansinho, numa eternidade de aproximação. O que fazer? Entrar ou não entrar no estabelecimento... se entrasse não se sentiria à vontade para falar com ela e o mais provável era ficarem por um cumprimento seco, como os 10 papo-secos encomendados – 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar; se não entrasse como iria justificar a sua inquieta presença ali no umbral da porta. Raios, que já lhe adivinhava a gozação – olha que a porta não cai - ou ainda pior, - às compras à mamã! - ou então, muito pior, a indiferença do costume. Estes pensamentos corriam-lhe vertiginosos e o embaraço crescia na proporção contrária à distância que o separava do inesperado encontro.
Zeca era moça despachada mas insensível aos atrevimentos dos rapazes, mesmo dos mais velhos. Já não era menina. A meninice tinha-lhe escapado no desconforto de um socalco de vinha em fim de Verão. Tarefeira ocasional, perdeu a curiosidade junto a cepa de videira anciã, vindima do fruto e do corpo. Não ficaram boas recordações dessa iniciação e, talvez por isso, a incomodassem os rapazes e os namoros.
Mas destas coisas não sabia o rapaz, que a julgava tão menina como as outras. Com ela sempre reprimiu fantasias ousadas e os próprios sonhos recusavam-se a colaborar com o desejo despontado.
Pressentiu-a. Levantou com dificuldade os olhos e esboçou um sorriso patético. Ela tomou consciência dele e, ligeira, subiu o degrau que antecedia a porta do estabelecimento. Hesitou. Virou-se devagar, olhou-o acintosa e disse:
– Tenho uma coisa para te contar. Espera-me no chafariz.
Nunca o tempo correu tão desacertado. A ânsia e o pânico apoderaram-se dele transformando aqueles breves minutos num desassossego aflitivo. Valeu-lhe a consolo da água ali à mão para acalmar o nervoso miudinho. Sentou-se no banco de pedra que existia nas traseiras do fontanário e serenou o que podia - 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar.
Ela chegou e contou:
– A minha prima de Lisboa pediu-me para te dizer que gosta de ti e que te desse um beijo por ela.
Ficaram silenciosos. Ela expectante. Ele especado.
– Não dizes nada- perguntou ela.
O rapaz remoeu silêncios - um beijo da prima! Eu não suporto a prima - pensou meio desiludido.
– Bem, toma lá um beijo que tenho de me ir embora.
Ele cedeu a face, triste e inconformado. Fosse por interior insatisfação, descontrolo emocional ou afoiteza irreflectida, não resistiu à aproximação dos lábios dela. Num gesto arrojado rodou ligeiramente a cara e beijou-a nos lábios. Afastou-se rapidamente e aguardou a estalada, não conhecesse ele a má vontade da rapariga para com estas liberdades.
Contra todas as suposições, Zeca arrumou traumas passados e, num arroubo de paixão reencontrada, agarrou os cabelos do rapaz e beijou-o longamente. Respirou, voltou a beijá-lo e afastou-se, sem olhar para trás.
O rapaz nunca tinha sido beijado. Tinha lido muito sobre este e outros assuntos complementares, mas desconhecia por completo o sabor e a textura de um beijo.
Demorou a digerir emoções e recuperou a placidez com dificuldade. Ainda incrédulo por tamanha dádiva, dirigiu-se mais calmo ao estabelecimento e pediu aquilo de que vinha a mando.
A mãe ainda hoje conta a história daquela vez em que o mandou comprar 10 papo-secos, uma broa e dois quilos de açúcar e ele apareceu com um saco enorme de açúcar e dois miseráveis papo-secos:
– Foi jogar à bola para o adro da igreja e baralhou tudo!
16 comentários:
rosalinda em teste
Muito bem. Afinal não era assim tão difícil.
Vamos ver se a partir de agora me disciplino.
Cristalinda o meu primeiro com. vai para si e para o seu recado. Um texto carinhoso a fazer lembrar tenros palpitares... bonito.
Rosalinda
Há histórias que... Bem!... Há primas e primas!...
é sempre bom passar por aqui!
Ó Cingab não me diga que o seu primeiro xoxo foi com uma prima... :)
Não!...
Bem, quer dizer, deveria ser prima de alguém...
Ou, se calhar, de Lisboa!
É lá estamos on-time
Primo ou prima já lá diz o povo... mais se lhe arrima... mas com tanta moça jeitosa da prata da casa teve que logo se iniciar com uma lisboeta... sabe-se lá por onde ela andou a oscular :)
Com tanto açucar os beijos deviam ser bem docinhos.....
Não foi o primeiro...
A bem dizer acho que não me lembro!...
Ó Cingab quem é que não se lembra do primeiro beijo... com sabor a chiclete...
5 *****
o texto
o beijo...
esse
pelos vistos foi pela gratuitidade, 10 *
... pelo menos 10 kg de açúcar valeu.
António
bem vindo ao Mulherio
...digamos que foi um beijo bem açucarado... um não, dois. Assim é que foi... eu sei do que estou a falar :)
Rosalinda
Uma vez que não se quer comprometer(!) continue a visitar-nos e a enviar esses textos maravilhosos... é óptimo ter por aqui outras abordagens, outras sensibilidades...
Kunami
"beijos docinhos"
há quanto tempo não ouvia essa expressão...quase infantil mas, como as coisas simples, tão deliciosamente apetecível... há quanto tempo não dou um "beijo docinho"? Vou dormir com o assunto :)
Cingab
Reconheceu o cenário? Já não existe o chafariz mas os beijos... ah os beijos... esses não precisam de cenários. Só precisam, quando bons, de ser eternamente lembrados.
Boas minhocas
Claro que reconheço o cenário! Tomava lá muitos banhos...
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