quarta-feira, maio 31, 2006

Crónicas da Galinha Riça - O Pavão

As suas penas já não brilhavam como era hábito e o característico leque da sua extravagante cauda abria-se assimétrico, denotando a ausência de vitalidade que, outrora, o tinha catapultado para a ribalta do poder. A patente decrepitude insinuava o inevitável canto do cisne, essa outra ave, bela, mas agoirenta no prenúncio metafórico. Como tinha chegado a este ponto ele bem o sabia. Erros seus, má fortuna, amor ardente.
A Zézinha por várias vezes lhe tinha dito que aquela paixão bucólica não se enquadrava no perfil de um presidente nem no exercício do poder que a constituição lhe conferia. Mais tarde ou mais cedo aquele envolvimento amoroso revelar-se-ia desastroso.
Mas naquele tempo as reservas dos seus conselheiros e o desagrado da Zézinha eram sistematicamente ignorados. Quando um assessor aflorava a porta do gabinete presidencial já a pergunta ecoava no ar:
- Então quando é que O Galinheiro vem a Lisboa?
Os assessores, alertados pelas recomendações do Chefe de Gabinete tentavam prevenir Sua Excelência o Pavão para o inconveniente daquelas manifestações, mas debalde. O presidente defendia com veemência o direito daquela capoeira reivindicar junto do poder executivo a restauração do Quintal.
A primeira-dama nunca se convenceu daquela boa vontade política, pois bem conhecia os tremores de excitação que acometiam o marido naqueles dias em que O Galinheiro se alvoroçava em excursões à capital. Era com alguma apreensão que o via escolher o melhor fato, alisar convenientemente as penas, colocar os óculos escuros, chamar o condutor, prescindir do corpo de segurança e, incógnito, rumar ao encontro da populaça. Ainda apelava à sensatez do marido dirigindo-lhe advertências e aconselhando-lhe ponderação, mas o presidente na sua exaltação amorosa ignorava-a displicente.
Aproximava-se discretamente daquele amontoado tumultuoso e fixava o olhar, estarrecido, naquelas belas trigueiras de entre serras empunhando fálicos estandartes. O clima daquelas terras altas tisnava-as de um moreno sedoso e desconcertante; as suas bocas deixavam entrever soberbos dentes e hálitos apetitosos; os peitos, roliços e fogosos, arfavam volumes apetecíveis ao ritmo de palavras de ordem e cantorias despropositadas mas não menos excitantes; as ancas, largas e fecundas, deixavam adivinhar abismos de perdição; os rabos, graníticos, enchiam-lhe a imaginação e o ambiente inebriava-o com doces aromas beirões e românticas fragrâncias campestres. Influenciado esteticamente por vivências britânicas, configuradas em paixonetas por frangas esquálidas e loiras deslavadas, estas outras, nutridas por suavidades atlânticas e frios hermínios, despertavam-lhe, agora, ruralidades adormecidas, reminiscências esquecidas de um povo reencontrado. Tentações indisfarçáveis, a avaliar pelo exuberante leque da sua cauda em amplo ritual de acasalamento.
Enciumada com o desconcerto amoroso do marido e atemorizada pela possibilidade de tal comportamento transbordar para a praça pública, Zézinha interiorizou que a única forma de serenar o Pavão era acabar com aqueles encontros. Longe da vista longe do coração – pensava ela. Ora a única forma de travar as visitas inoportunas do Galinheiro seria devolver-lhe o Quintal. Em última estância competia ao marido aprovar tal requisito e, uma vez que ele nutria tanta admiração por aquelas pindéricas com certeza lhes faria o proveito. Conspirou influências junto dos partidos políticos alegando razões de estado e outras vantagens políticas e facilmente obteve o apoio destes. Depois do diploma ter sido aprovado em assembleia só faltava o despacho favorável e conciliador do marido.
O presidente acordou indisposto naquele dia. Sabia que todos os procedimentos legais estavam assegurados e que só lhe restava esgadanhar a assinatura para que O Galinheiro recuperasse O Quintal. Também sabia que isso lhe subtrairia o deleite daquelas ansiadas visitas e o prazer arrebatado daqueles momentos amorosos. Confrontado com este dilema contrariou todas as regras de bom senso. Num rasgo caprichoso de amante obsessivo, negou provimento às pretensões do Galinheiro e recusou esgadanhar o documento. Estava assim assegurada a continuidade das manifestações na capital.
Embora a sua decisão tenha sido vista com alguma perplexidade, foi acatada tranquilamente pelos agentes políticos da república. Afinal presidente é presidente - lá terá as suas razões. Um novo fulgor lhe assomou ao espírito devolvendo-lhe cores e exuberâncias julgadas perdidas. Porém, por razões incompreensíveis ao seu espírito, passaram-se meses e O Galinheiro não retomou as suas digressões, quedando-se lá por terras de Viriato em escaramuças com a polícia de choque e outras confrontações. Instado a pronunciar-se sobre estes acontecimentos o presidente não resistiu à transparência dos seus sentimentos e admitiu pesaroso:
- Isto não é um caso político. Isto é um caso de amor!
De imediato foi convocado o gabinete de emergência, reuniram-se assessores e conselheiros. Por razões de segurança nacional, confiscaram-se câmaras e gravadores, manietaram-se jornalistas e testemunhas e contrataram-se técnicos para adulterar as gravações. Como colmatar esta gaffe inconveniente e comprometedora? Logo o assessor de imprensa, astuto nestas andanças, arranjou prestimosa solução. O que Sua Excelência o Presidente da República afirmou foi que este caso não era um caso de política mas sim um caso de polícia.
Resolvido o “mal entendido” e inviabilizada qualquer fuga de informação, novas preocupações surgiram aos homens do presidente. O Pavão, agora em fim de mandato e angustiado pela saudade, insistia teimosamente em visitar aquelas terras na esperança de rever as suas amadas. Nada o demovia da ideia. Incapazes de o contrariar forjaram-se planos e traçados alternativos, polémicos e especulativos à época, mas eficazes na intenção. O presidente passeou-se por estas bandas mas o desejado reencontro foi evitado. Um mal menor devidamente justificado pelo chefe da Casa Civil da Presidência da República.
O Pavão nunca mais foi o mesmo. Caiu em profunda depressão e retirou-se frustrado, remoendo arrependimentos e desejos inconfessáveis. Ai o amor! O amor, tantas vezes incompreendido.
- Zézinha apaga a luz. Amanhã vamos a Canas de Senhorim.
- Irra! Raios partam o homem.

Bons repenicos

11 comentários:

PortugaSuave disse...

Cara Riça
Já pensou reescrever a História de Portugal? Sugiro um nome: O Código de Camões. O resto é consigo :)

Cumprimentos e venham daí essas crónicas... sempre agradáveis.

PortugaSuave disse...

Já agora como consegui pôr os parágrafos no texto. Uma coisa que me irrita quando escrevo no meu blogue é não conseguir fazer os parágrafos. Seria pedir-lhe muito que me ensinasse?

Cingab disse...

:)

Sr. Fulano Tal disse...

@portugal

Experimente escrever no frontpage e depois copiar o código html. Pode fazer muita coisa.

Cumprimentos

Achadiça disse...

Portuga
nós também não percebemos nada disto. já escrevi o código mas como esta caixa de texto reconhece html dá erro.vou enviar-lho para o seu mail

haverá outras formas mas esta funciona. O sr fulano também já lhe deu uma solução, portanto bons parágrafos...gostei do pragmatismo canense
B:»

PortugaSuave disse...

Achadiça e Sr fulano tal

Muito obrigado. Funcionou à primeira

Cumprimentos

Riça disse...

Caro Portuga

A nossa história já está cheia de malabarismos narrativos, ao sabor da época e de outras conveniências. O próprio Camões foi pródigo em adulações e deturpações, só desculpáveis pelas febres venéreas que prodigiosas nativas lhe transmitiram lá por terras de gengibre e mel. Enfim ossos do ofício de poeta. A ele, nada lhe valeram em vida, e a mim resta-me tentar humildemente repor a verdade da recente história deste Galinheiro tantas vezes vilipendiado.
Obrigada pela sugestão. Já leu "Príncipes de Portugal", do Aquilino Ribeiro? Um exemplo notável de como tão mal nos contaram alguns episódios da nossa História.

Polo Norte

Bem vindo e obrigada pela visitação. A história nunca tem fim. Cá estarei, assim a depressão mo permita e o dinheiro chegue para o Prozac.

Achadiça

Lisboa espera-nos. Até logo. Não te esqueças do portátil e da máquina fotográfica.

Achadiça disse...

ó riça pior que o camões e muito para além de ti só mesmo o fernão mentes? minto

vou a caminho

Rosa disse...

Cristalinda,

Nunca a Rosa ouviu (leu?) palavras tão certeiras. Há mulheres assim, conseguem ver(-se) nas outras com clareza e lucidez.

Achadiça disse...

Obrigada pela visita Rosa. Até sempre, que é o mesmo que dizer, onde houver uma mulher haverá sempre um pouco de ti.

Rosa disse...

cristalinda, esqueci-me de dizer que tomei a liberdade de "postar" o teu texto na fundaSão. parece que já ganhaste por lá um admirador :)