terça-feira, janeiro 09, 2007

Crónicas da Galinha Riça - A Mãe Natal

A Mãe Natal acordou bem disposta naquele dia. Enquanto se banhava em aromas de lavanda e outros recursos libidinosos ia pensando qual a indumentária que lhe proporcionaria mais força para impor, na Concertação Natalícia, as ideias confidenciadas durante a noite, entre afagos e requebros de boa memória. Sim, porque isto de uma mulher transmitir segurança e exercer poder pode muito bem ser influenciado pela cor do vestido ou das formas que este revela ou esconde, especialmente se o meio onde se move for maioritariamente masculino.
O costumeiro “tailleur” vermelho que já lhe garantiu persuasão e credibilidade parecia-lhe agora insuficiente para levar a cabo as iniciativas que o seu amante lhe tinha sugerido naquela noite.
Optou por um vestido cor de vinho, ligeiramente acima do joelho e generoso no decote. Sapatos pretos de salto alto, sem exagero. A lingerie foi escolhida meticulosamente. Ligas preto-translúcido, cuequinha e underbra vermelhos, para não quebrar totalmente a tradição. A rematar a compostura, um pormenor íntimo, pouco vulgar numa Mãe Natal mas eficaz no propósito: Uma tatuagem discreta na zona púbica, evidenciada pela ausência de pelugem que uma cuidada depilação tornava visível a quem com ela comungasse intimidades. Duas letrinhas apenas, dedicadas de dor e alma ao seu recente amante – LP.
Olhou-se pela última vez ao espelho. Compôs o cabelo e hesitou na escolha do perfume. Para esta ocasião precisava de um aroma forte e quente. Aquela sala tinha que sentir a força que emanava do seu querer. Os perfumes americanos são muito light, próprios para aventuras descomprometidas, logo pouco convictos. Só os franceses correspondem ao requisito. Começou a enumerá-los. Christian, Yves, Chanel, Angel... Angel! Sim, este é capaz de hipnotizar um anosmático. Aspergiu-se e saiu confiante.
Na sala onde iam ser tomadas as grandes decisões para este Natal, discutiam-se informalmente prioridades e estratégias na distribuição dos presentes, quando a Mãe Natal assomou à porta. Todos se levantaram em devido respeito.
- Deixem-se estar. Muito bom dia meus senhores – cumprimentou cerimoniosa, tomando a palavra.
- Li todos os relatórios que os senhores elaboraram. Felicito-os pelo excelente trabalho. Concordo na generalidade com as vossas recomendações pelo que já autorizei as verbas necessárias à execução das vossas propostas. Porém, gostava de chamar a vossa atenção para a completa omissão relativamente à vila de Canas de Senhorim...
Mal a palavra Canas se fez ouvir, logo um murmurinho reprovador se instalou entre os presentes. Um dos pares, inconformado com aquela chamada de atenção, lembrou:
- Mãe Natal, como é do seu conhecimento, nunca tal vila foi tão presenteada como aconteceu ao longo do mandato do qual vossa excelência é legítima titular. Bem sei que o comportamento dos canenses no presente ano foi exemplar, poupando-nos a rebeliões e outras inconveniências habituais, contudo, e creio poder falar em nome de todos os signatários da Concertação Natalícia, é de todo contraproducente reforçar o cabaz de Natal de Canas de Senhorim, pois já tiveram o seu quinhão ao longo do ano. São uns pedinchões e uns mal agradecidos. Se lhes damos uma Play-Station 2, querem logo 4 comandos, um jogo de Wrestling, um do OO7 para PC e ligação à Internet para jogar on-line. Mesura e parcimónia, Mãe Natal. Mesura e parcimónia. Tenho dito.
Todos acenaram afirmativamente em gesto de concordância e até houve um, mais labioso que exclamou, “apoiado”. A Mãe Natal não vacilou. Aguardou serenamente que os ânimos serenassem. Depois, ergueu-se da cadeira, insinuando corpo e aroma e esclareceu:
- Compreendo a vossa apreensão mas deixem que vos diga que ainda sou soberana em matéria de prendas e a decisão final é da minha competência. Neste Natal faço questão em descriminar positivamente Canas, pois não posso alhear-me da miséria que lhes calhou em sorte em Natais passados. Para além disso gostava de alertar que os presentes que vou propor, para os quais espero a vossa anuência, não constituem despesa para o Banco São Nicolau, pois eles serão suportados por verbas da CMN, o que é o mesmo que dizer, pelos próprios canenses. Proponho, portanto, para este Natal que se contemple a vila de Canas de Senhorim com mais duas rotundas, que se conclua a rotunda da Escola e que se iluminem convenientemente as suas ruas. Compete-me a mim, com a ajuda de vossas excelências, proporcionar aos mais desfavorecidos um feliz Natal. Julgando estar a minha proposta imbuída do espírito que norteia os princípios fundamentais desta concertação, apelo ao vosso alto sentido humanitário para reconfortar os canenses que, no seu sábio silêncio, devem ser merecedores da nossa especial atenção.
Dito isto, a Mãe Natal, ajeitou o vestido, colocou as palmas das mãos no tampo da mesa e, mantendo-se soerguida olhou-os, um por um, em jeito de desafio. O decote generoso deixou entrever fugazmente a renda vermelha do underbra, que despia volumes difíceis de contrariar. Há já algum tempo que a fragrância do Angel tinha intimidado a plateia e foi neste clima que a reunião viu aprovados os presentes de Natal para Canas de Senhorim.
Dizem as más línguas que estas prendas só foram possíveis porque a Mãe Natal anda caída de amores por um canense e que até tem as suas iniciais gravado algures no corpo, prova inequívoca do romance. Pois a vossa cronista está em condições de afirmar que é mentira, ou pelo menos é meia-verdade. O que a Mãe Natal tem tatuado no baixo ventre são as iniciais da expressão “Loucamente Perdida”. E quanto a isso só ela poderá dizer por quem!

Bons repenicos

4 comentários:

Achadiça disse...

Ai que isto vai de mal a pior!!

ibotter disse...

grandes entradas por aqui...
clap clap clap!

PortugaSuave disse...

Excelente início de ano. Dá gosto ler as suas crónicas. Sempre mordazes e espirituosas.
Cumprimentos

Cingab disse...

Espirituosas?!? Ah, sim, talvez... Como as bebidas