terça-feira, novembro 07, 2006

Mexericos

Diz o senso comum, seja lá isso o que for, que as mulheres são muito dadas a mexericos. Talvez o papel que lhes esteve reservado desde os primórdios da sua existência, confinadas à exiguidade da caverna, cuidando filhos e afazeres domésticos, tenha determinado essa apetência para o convívio e para a conversa. Matavam assim o tempo e outros temores, na espera dos homens que, lá fora, silenciavam palavras no ofício da caça, não fosse o ruído transformá-los em presas. Assenta neste cenário a teoria vigente das diferentes capacidades do cérebro humano, que atribui à mulher aptidão para se desmultiplicar ao mesmo tempo em diversas tarefas e raciocínios , por oposição ao homem que privilegia a concentração num só assunto de cada vez.
O papel caseiro das mulheres alterou-se substancialmente com o advento da revolução industrial. As mulheres romperam o circuito fechado do lar e o tempo e predisposição que antes lhes sobravam para manter o “diz que disse” com a vizinha e as amigas, tornou-se escasso. Sim, porque o facto de trabalharem fora de casa não as privou dos cuidados domésticos e da educação da prole, circunstância que só a revolução sexual dos anos 60 do século XX e o advento dos electrodomésticos viria alterar ligeiramente. Com estas alterações sociais, as mulheres perderam a exclusividade do mexerico a favor dos homens, os quais, a coberto de maneirismos socialmente autorizados, se permitem, agora, exercer com idêntica mestria e superior desempenho o cochicho e a maledicência.
Vem isto a propósito do mexerico que o Hipólito da contabilidade partilhou com o Sr. Teodoro do 5º andar:
- Verdade pá. Vi-os no jardim a partilhar uma pizza. O cagão do “João Cerimónias” com a jurista, aquela alta, cavalona, que anda sempre de calças de ganga. Não, não é a pencuda, é a outra. Aquela que se divorciou há pouco tempo.
O Teodoro, de olhar arregalado, chegou-se mais e murmurou com cumplicidade:
- A doutora e o “Cerimónias”! Essa nunca me enganou… Cá p’ra mim já andava com o gajo quando estava casada. Mas esse gajo não anda a comer a Ritinha da recepção?
- Ó Teodoro ele anda a comer é num sítio que eu cá sei. De onde pensas que lhe vem a alcunha do “Cerimónias”. É só palavrinhas mansas a dar ao delicado, amigo Hipólito para aqui, amigo Hipólito para ali. Sabes o que é que ele me disse há tempos… “amigo Hipólito acomode-me lá os números antes que eu desvaneça”. Achas isto linguagem de homem? E mais “na relação entre a empresa e o cliente o mais importante é a sedução…”. A sedução, os afectos e por aí fora, dizia o gajo. Achas isto normal?
- Bem, é um bocado suspeito. Mas a Ritinha, agora a doutora…
- Qual Ritinha qual quê. Essa é uma “vai com todos”, desde que tenham carro com cilindrada acima dos 1600 cc. e estofos de cabedal.
- É pá, não sejas injusto, a Ritinha é uma querida. Lembras-te do almoço de Natal? Bebeu uns copitos e tive que levá-la a casa. Os copos deram-lhe para o sentimento e desabafou amores inconfessáveis pelo caganças do “Cerimónias”. Uma coisa deprimente.
- Levaste-a a casa! E comeste-a?
- Então! Já esqueceste as regras. Isso nunca se pergunta.
- Está bem, mas comeste-a ou não?
O Hipólito não obteve resposta. Ambos sorriram perante a cumplicidade que emanava desta última troca de palavras. Os códigos masculinos são muitas vezes insondáveis e a subtileza com que assuntos destes são tratados surpreendente. Ficou no ar a impressão de que efectivamente algo se tinha passado com a Ritinha da recepção e o Teodoro, porém, sem o vínculo da palavra expressa ninguém poderia assegurar que ele afirmou aquilo que sugeriu nem ignorar que não possa eventualmente ter acontecido. Técnicas de mexerico masculino na primeira pessoa.Nove horas da manhã. Na recepção, a Ritinha, elegante como sempre, exibia excesso de maquilhagem, na tentativa desesperada de disfarçar olheiras recentes. Saúdo-a a contra-gosto e dirijo-me ao elevador que já era aguardado pelo Sr. Hipólito.
- Bom dia doutora.
- Bom dia Sr. Hipólito.
A forma como me cumprimentou, não sendo desrespeitosa, soava, na entoação, a um nível de confiança despropositado. No olhar deixou entrever um sorriso malicioso, só corrigido após a minha indisfarçável desaprovação.
Entrámos no elevador. Eu bem sabia o que lhe ia no espírito. O que ele me quis transmitir foi, muito simplesmente, que era portador dos meus segredos, conhecedor dos caminhos da minha intimidade e eu, no mesmo sítio onde já me senti tão confortável, apanhada na surpresa de um beijo atrevido, sinto-me agora nua, desconfortavelmente despida pelo olhar insidioso do Hipólito da contabilidade.
Boas minhocas

3 comentários:

Cingab disse...

É uma injustiça,
Já não se pode comer uma pizza em paz

PortugaSuave disse...

Muito bom. Temos romancista. Aguardo desenvolvimentos. Gostava era de saber onde começa a realidade e acaba a ficção, ou vice-versa?

Catharina disse...

Não,nunca li as 4 estações de Vivaldi!

A qualquer momento comento este post...!