domingo, setembro 17, 2006

Historieta

As boas raparigas vão para o céu, as outras para onde quiserem


Acordei tarde, enxovalhada. A cabeça latejava na urgência do benuron. Malditas ressacas, pensei, enquanto tentava reconstituir as “brancas” da noite anterior. O quarto tresandava a exsudações etílicas e aromas corporais desaconselháveis. Pressenti que algo estava errado e num repente virei-me na cama. Merda, merda, merda! Um volume sob o lençol deixava entrever uns ombros peludos e musculados e um braço, igualmente cabeludo, espreguiçava intenções sobre a minha anca. Ressonava ao ritmo da minha angústia anunciada.
Senti-me. Pelo menos não estava nua, bom sinal. Mas o despertar lento próprio destes acordares trouxe-me à memória odores conhecidos, gestos e refregas antigas, reconciliações do corpo, desejos e rejeições familiares. Eu bem conhecia aquela cabeleira que amachucava a minha almofada. Sim minha, porque o egoísta apropriou-se dela e eu dormi toda torcida, como retorcida me sinto agora contemplando o infeliz despojo. Nem mais nem menos, o meu ex-marido devolvido à procedência pela própria remetente. Resfolgando consolado na minha cama. Merda, merda, grande merda!
Como se não tivesse bastado o calvário das traições, das discussões, do amor esvaziado; Como se não tivesse já passado pelo purgatório do processo litigioso de separação, com a nossa vida a ser dissecada por meirinhos escrupulosos e testemunhas de coisa nenhuma, pela difícil e patética negociação do carro, da casa e do recheio. Como se tudo isso não fosse já por si um tormento, revejo-me agora, passados quatro anos, repetindo intimidades de leito, num gesto irreversível de insanidade física e mental.
E agora? Como vou enfrentar este satanás rabudo que instalou o inferno na minha vida e num deslumbre de insensatez, lhe permiti o corpo depositando-o madrugada dentro, por inteiro, dentro de mim. Eu, que já o tinha erradicado a ferros da pele, da cabeça, das mãos, da boca, dos olhos, das entranhas. Que inferno este que me seduz, atrai, queima e condena. Um verdadeiro inferno.

B~~

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