segunda-feira, setembro 18, 2006

Crónicas da Galinha Riça - A Luta

Assomaram ali para as bandas da Boiça. Quem os viu pela primeira vez conta que apareceram do nada, ou por outras palavras, vindos do horizonte da história, envoltos numa imagem difusa por efeito dos vapores solares reflectidos pela terra quente do meio-dia. Silhuetas indistintas ao longe, foram arrumando formas na aproximação ao casario fronteiriço do Casal.
A moça, que bordava o enxoval, apontou o dedal na direcção dos forasteiros, não porque fosse raro ali passarem desconhecidos, pois ela bem sabia que por este caminho lhe chegaria amor prometido, também ele desconhecido por agora, mas certo na reza que fez a São Caetano, «Ó meu rico S. Caetano traz-me homem honrado, pode ser este ano que não dei por ele ano passado». Mas, o que prendeu o olhar da moça e lhe semi-cerrou o sobrolho foi o aspecto invulgar daqueles dois viajantes: À frente, montado num cavalo parco de carnes e lento no andar, um cavaleiro fidalgo sacudia a poeira acumulada da armadura que lhe envolvia os ombros. Desdenhoso nos seus trajes medievais, empunhava verticalmente na mão direita uma lança de dimensões desproporcionais; Na sua mão esquerda um escudo metálico circular, na cabeça um elmo ligeiramente amolgado e à ilharga uma espada embainhada. Na sua peugada, vagaroso, um burrico indolente carregava na albarda um homem anafado e andrajoso. Dos flancos do animal pendiam vários apetrechos de viagem que chocalhavam a cada passo do asno.
O fidalgo estacou o ginete bem em frente da varanda onde a moça, ainda incrédula do que presenciava, acertava o raciocínio buscando explicação para aquele quadro burlesco. O cavaleiro, com gestos cerimoniosos, tirou o elmo da cabeça e dobrando ligeiramente o corpo, fez uma vénia e apresentou-se:
- Chamo-me Dom Quixote de La Mancha. Cavaleiro Andante. Este, que me acompanha é o meu fiel escudeiro Sancho Pança.
A rapariga, embora mais dada a alinhavos de enxoval, não descurava literaturas seiscentistas, pelo que, reconhecendo nos interlocutores as personagens de Cervantes, tomou ironicamente as apresentações.
- Eu sou a Dulce – brincou ela na alusão propositada ao nome da bela Dulcineia.
- Dulce! Formosa donzela, que seja mil vezes amaldiçoado o ignóbil que vos impôs tão sórdido destino. Não desespereis que já me apronto a libertar-vos. Dizei-me quem vos mantém cativa por detrás dessas grades que escondem a vossa beleza e olvidam a vossa virtude.
Esta Dulce de ocasião, julgando-se confrontada com brincadeira de galanteador folião, não desarmou.
- Bem-vindo sejas e que os caminhos que percorreste não tenham sido em vão. Quem me tem presa também agrilhoa este povoado de Canas de Senhorim. Libertando-o, libertar-me-ás igualmente. Para isso terás que derrotar os Senhores do Reino de Asnelas.
O até agora silencioso escudeiro Sancho Pança esboçou um gesto de impaciência. No seu íntimo já antevia novas batalhas e fantasiosas demandas. Cansado e saudoso de temperos e favores familiares tentou chamar o seu amo à razão:
- Senhor, bem sabeis que vos tenho sido fiel nas intenções e digno nos propósitos, que vos tenho protegido e servido nos maus momentos, que dos bons não tenho memória, mas deixai que vos diga que ao intento a que vos propões não vislumbro fama nem glória.
- Como ousais destinar a batalha sem a travar! Rouba-te a barriga a coragem e esquenta-te o sol a moleirinha. Dizei-me Dulce, que caminho devo tomar para sitiar os Senhores de Asnelas.
A rapariga, animada pela gentileza e já insegura quanto à falta de credibilidade que os visitantes lhe tinham inspirado, decidiu sugerir-lhes o centro da Vila e que por lá se esclarecessem.
- Não fica a mais de uma légua para norte senhor. Porém mais vale que tomeis o centro da Vila para aí dar conta da façanha e angariardes reforços – recomendou seriamente, num esforço para dominar o nervoso miudinho que lhe revelava incertezas contidas.
- Assim farei. Aguardai-nos no vosso recato e não temeis por vós, que me hei-de apressar a resgatar-vos.
Quis a autora desta crónica que neste dia, as ruas de Canas de Senhorim estivessem animadas pela Feira Medieval. D. Quixote e o seu companheiro, julgados precipitadamente como figurantes, foram recebidos com palmas e manifestações de regozijo. Mas a figuração não se quedava pelo aspecto. Sancho Pança, a mando do amo, calcorreou as ruas do recinto anunciando ao que vinham e informando que para mais esclarecimentos se dirigissem ao Pelourinho, onde D. Quixote, cavaleiro de La Mancha, aguardava aqueles que, por amor à liberdade e à justiça, estariam dispostos a combater sob as suas ordens os Senhores de Asnelas. Logo se juntou uma multidão na crença de que este ano o Grupo de Teatro Pais Miranda se tinha esmerado nas artes do teatro de rua.
De cima do cavalo Rocinante, D. Quixote anunciava de armas em punho o fim da escravidão e do servilismo, assim se juntassem a ele na incursão que pretendia levar a cabo a terras de Asnelas.
- Não temeis, pois a razão está convosco e é meu ensejo restituir-vos a dignidade e os domínios dos vossos antepassados, infamemente usurpados pelos Senhores de Asnelas. Despeçam-se das vossas famílias e sigam-me.
Dito isto, tocou o cavalo Rua do Paço acima, seguido pelo aio Sancho Pança.
Entreolhou-se a multidão. A princípio, alguns figurantes, protagonizaram a iniciativa e juntaram-se timidamente ao cavaleiro, depois, como que por simpatia colectiva, a coluna dos sitiantes engrossou efusivamente. Malabaristas, saltimbancos, dançarinas, jograis, tasqueiros, mendigos, indigentes, acorrentados, leprosos, carrascos e condenados, bruxas e curandeiros, domadores de feras, caretos e andarilhos, vendedores e vendedeiras, visitantes e visitados, todos em alegre algazarra, coloriram o compacto cortejo que se esvaneceu mais acima, na curva do Frazão, rematado à retaguarda por catraios curiosos e gentios pouco esclarecidos.
Desta trupe entusiasta e das suas aventuras por terras de Asnelas e da capital do Reino, já deu conta Cervantes. Vitórias, derrotas, traições, deserções, alegrias e tristezas foram perpetuando o nosso líder D. Quixote que pelejou estoicamente, nunca abdicando dos ideais cavalheirescos do amor, da paz e da justiça.
O ideário picaresco de libertação que D. Quixote protagonizou por terras de Canas de Senhorim, fidelizou a vontade colectiva no propósito independentista que ainda hoje habita o coração dos canenses. Foram lançadas à terra as sementes do idealismo, promissoras da transformação do real. O alcance da colheita competirá às gerações futuras assegurar. Foi com esta convicção que D. Quixote, um dia, após muita insistência do seu escudeiro Sancho Pança, que na sua versão realista dos acontecimentos já tinha previsto quão utópicos eram os ideais do seu amo e do exército mafarrico que o acompanhava, apontou o cavalo Rocinante à Rua do Casal. Foi a última vez que os viram. Diz, quem viu, que na garupa do cavalo de D. Quixote ia uma moça vestida de noiva.

Bons repenicos

2 comentários:

PortugaSuave disse...

:D

Idealismo quixotesco...
O romântico líder (El Líder?) D. Quixote!!!
O realismo do Sancho Pança...
Exército mafarrico... donzelas casadoiras
Ai ai %#@£@#, ó Dona Riça veja lá não se enrede no enredo

Cingab disse...

Bom post... Muito bom post!...

Eu pertenço ao exército mafarrico... o Grupo de Teatro Pais Miranda sempre nos brindou com qualidade...