quarta-feira, agosto 09, 2006

Dois em um

Depois de assentar numa agenda electrónica toda sofisticada os males identificados pela minha pouca sensibilidade mecânica, prometeu-me pelas alminhas que o carro estaria pronto no dia seguinte - sem falta - acrescentou por via da minha expressão pouco crédula.
Os sintomas eram mais preocupações de quem vai de férias e quer assegurar alguma tranquilidade à viagem, embora se saiba que com motores e componentes electrónicos nada está assegurado. Porém havia um aspecto que não podia descurar. O ar condicionado foi um ar que lhe deu. Ora como sufocada já eu sou por natureza e os dias que se adivinham parecem comungar essa característica comigo, não hesitei, dirigi-me à oficina do meu mecânico.
- Sr. Tadeu olhe que o ar condicionado não funciona. Veja lá!
- Não se preocupe, telefone-me aí por volta das seis.
O Sr. Tadeu é o dono da oficina e há três anos que me trata do “grilo” (chamo assim ao carrito porque quando o adquiri trazia um grilo acoplado). Empresário empreendedor, imprimiu à oficina a modernidade exigida pelos modelos automóveis mais recentes adquirindo os meios de diagnóstico e terapêutica mais sofisticados do mercado. Frequentou todos os cursos necessários ao domínio das novas tecnologias e, a par disso, a oficina, de tão organizada e limpa, concorre com o mais asséptico bloco operatório.
Foi amor à primeira vista a minha relação com a oficina e com o dono, embora esta relação me saia cara pois ao que parece o “grilo” também gostou e meia volta lá me convoca para uma visita ao Sr. Tadeu.
O Sr. Tadeu nutre uma afeição especial por um rafeirito todo preto e irrequieto que recolhe as primeiras impressões dos clientes, rondando-os e cheirando-os curioso e afectivo. Porém, para orgulho do dono e segundo comentários generalizados dos funcionários, mal os portões se fecham para o encerramento da oficina, o “Black” transforma-se num guarda impiedoso, digno de respeito e distância.
Quando cheguei para levantar o carro lá estava o “Black”, cordial na aproximação e desinteressado após alguns segundos de inspecção. Troquei algumas palavras com o Sr. Tadeu sobre as condições do carrito e as férias que se avizinhavam, paguei e arranquei. É verdade que senti um ligeiro desconforto no carro, como se algo estivesse profundamente alterado na viatura, mas associei essa impressão ao facto de ter sido manipulado por outras pessoas e não liguei importância. Porém, uns bons kilómetros à frente, um movimento inesperado obrigou-me a olhar o espelho retrovisor e qual não é o meu susto quando deparo com um focinho preto feliz e sorridente estampado no espelho. Não me lembrei do cão afectuoso que nos recebe ao portão. Só pensava no cão de guarda impiedoso. Abrandei, dei a volta, tudo muito devagarinho, não fosse a fera despertar, e lá voltei receosa à oficina.
Saí do carro e já mais descontraída deu-me para brincar:

- Ó Sr. Tadeu, parece que o seu cão gosta do ar condicionado!
- Olha o raio do bicho…se calhar a menina tem uma cadela e costuma andar com ela no carro. Desculpe lá.
Vim-me embora a pensar: Qual cadela qual quê! E se o cão me mordesse; e se eu me assustasse e tivesse um acidente.
Uma coisa é certa: Agora, para além do ar condicionado, tenho um reflexo condicionado que me obriga a olhar par o banco detrás antes de entrar no carro. Ar e reflexo, dois em um. Com o Sr. Tadeu é assim.
B~~

segunda-feira, agosto 07, 2006

Lesbos

Já ia longa a noite, mas o gin-tónico inebriava-me os sentidos e estimulava-me a vontade. Não dei conta do tempo passar e, quando a música acabou fiquei suspensa na última nota – frenética.
*****
O bengaleiro abarrotava numa fila vagarosa e interminável. As trocas de mimos, os olhares furtivos, os abraços, os beijos, o brilho no olhar de quem engatou, o inconformismo de quem não engatou, o olhar baço de quem bebeu para além do limite… enfim, eram tantos e tão diversos os estados de alma naquela fila de fim de noite que me entretive a especular sobre aquela amálgama de expressões.
À minha frente duas raparigas entreolhavam-se com excessiva ternura. Suspendi a respiração. Só eu reparava nos afectos que trocavam. Olhar incandescente, leves manifestações de carinho. Olhei em volta mas só eu testemunhava aquele namoro. Elas, indiferentes a tudo e a todos, não mostravam qualquer inibição. Eu, que já tive o meu quinhão de urbanidade e deveria encarar o facto com alguma normalidade, não consegui evitar alguma surpresa. Dei comigo a pensar: E se esta cena se passasse em Canas, ou noutra vila qualquer… bem, provavelmente no bairro delas também não conseguem ter este “à vontade”. Isto só acontece porque ninguém as conhece, caso contrário não se sentiriam tão desinibidas. É que por mais que aceitemos, por mais casos conhecidos deste particular amor entre amigos ou amigas comuns, a exposição pública da homossexualidade, mesmo que traduzida na inocência de um simples carinho, continua a ser objecto instintivo de repulsa pública. Vem ao de cima a tradicional moral dos costumes com a respectiva chacota atrelada, isto quando não resvala para a provocação ou para outros comportamentos ofensivos.
Dei comigo a pensar nisto e a criticar-me por mostrar surpresa. Afinal também eu estou, ainda que inconscientemente, arreigada à pseudo-moral institucionalizada.
B~~

quinta-feira, agosto 03, 2006

quarta-feira, agosto 02, 2006

Uma história em três actos - Acto III

Esta semana, a viabilidade daquela relação esmoreceu completamente. Vasco pressentiu-o. Alguém tinha alterado o ritmo cardíaco da Rita e esta, na ingénua honestidade de quem pensa não ter nada a perder, confirmou-lho displicentemente ao telefone. Vasco acendeu o primeiro de vários cigarros de um ano de abstinência. Agora a privação era de amor e o apelo à nicotina incontornável.
- Saturado. Estou saturado… ela que diga de uma vez por todas o que quer para eu seguir a minha vida – confidenciou-me ao telefone, entre a angústia e a impotência de quem não pode nem sabe o que fazer.
Não fosse a singularidade daquele telefonema, eu teria pensado que era mais um desvario clandestino da Rita, facilmente cicatrizável e diluível no próximo desarrufo de namorados. Claro que me ocorreu que o telefonema para além de terapêutico servia interesses informativos. Mas eu nada sabia e ele, hábil, não ousou perguntar. Ficámo-nos pelos desabafos de circunstância. Convencida da gravidade da situação, prometi telefonar-lhe brevemente.
Se eu tivesse menos uns anitos impunha-se de imediato um telefonema à Rita, mas a vida ensina-nos que nestas coisas do amor o melhor é ser espectador. Interventiva, só para colar os cacos no fim da refrega.
Passaram dois dias e telefonei como prometi. Embora receosa, pois não me sentia muito disponível para o longo rosário de queixas que se adivinhava, marquei o número e aguardei. Semicerrei olhos e coração para aguentar o embate e deixei fluir a voz cava do Vasco. Aos poucos descontraí, como por efeito de um relaxante muscular que, neste caso se traduzia na aparente tranquilidade com que Vasco desdramatizava o episódio.
- Olha, tudo bem, amigos como dantes…
Tudo bem! Amigos como dantes! Apeteceu-me mandá-los à merda! Que fossem ser (in)felizes para o raio que os parta, apanhar banhos de sol na encosta do Krakatoa, passar férias no Líbano, inimputáveis de uma figa, desmesurados… mas dei comigo a dizer:
- Óptimo, óptimo. Ainda bem que esclareceram tudo. Fica bem. Dá um beijo à Rita e às meninas.
B~~

terça-feira, agosto 01, 2006

Uma história em três actos - Acto II

Rita conheceu e apaixonou-se pelo Vasco. Encontraram-se a meio caminho, entre a urbanidade desencantada dela e o apelo rural dele.
Ele, Beirão de nascença, espreguiçava da boémia parisiense e dos prazeres mundanos com que preencheu a vida, acalentando vagamente o retorno às origens na companhia desta paixão tardia, convicto que a felicidade pode bem ser uma casinha pequenina onde se possa amar com bonomia. Homem experimentado, inteligente e espirituoso não se deixou intimidar pela responsabilidade que implicava assumir aquela paixão e, reflectidamente, terminou a relação gasta com a sua ex-mulher, para se entregar de corpo e alma a esta outra, mesmo que consciente do quão imprevisíveis eram os caminhos deste amor e da volatilidade caprichosa da Rita.
Ela abraçou a vida aos trinta e tal com o mesmo ímpeto que abraçou a droga aos catorze. É possessiva e de paixões desenfreadas; tudo ou nada - no meio não tenho virtude nenhuma - diz ela, insinuando o gesto obsceno, reminiscência de deambulações pelo Casal Ventoso – tenho ânsias de viver que me turvam a razão… e depois? Egoísta eu! Apanhei a último vagão do comboio da vida, mereço-o todo… tenho pressa de viver que a vida é água a correr, venho do fundo do tempo, não tenho tempo a perder. Sem licença! Sem licença, sem licença quero passar, trago boca p’ra comer e olhos para desejar – aqui, ao poema do Gedeão, acrescenta a respectiva música e eu, deleitada com a sua avidez, aquiesço com um sorriso complacente.
Vasco fez projectos, galgou quilómetros, apoiou, deu, deu-se. Rita porém, na sua busca de vida, brincava com o homem que elegera amar. As traições, embora inconsequentes, sucediam-se e, ainda que Vasco as desvalorizasse com a compreensão de homem mais velho, quase paternal, a sua complacência ameaçava esgotar-se perante a temeridade e o estouvamento dela. Várias rupturas e outras tantas reconciliações ocorreram nestes seis anos de relação. Os amigos habituaram-se aos desencontros cíclicos do casal e deixaram de questionar aquele amor, aceitando aquela realidade com a naturalidade possível. Eu, expectante, mas crente na paixão dos dois, aplacava queixas e inconformismos mútuos próprios de quem ainda se quer, enternecida pelos tropeções daquele namoro que rapidamente assumiu contornos de normalidade aos nossos olhos, mesmo que invulgar ao olhar alheio.


(continua)