terça-feira, dezembro 19, 2006

Uma história de Natal singela ou o Natal dos Simples


Primeiro deram as mãos, as duas, no jeito simples de quem se contempla. Depois trocaram os beijos e as lágrimas que a saudade impunha.
Ele trazia nos olhos o nevoeiro da Grande Cidade, longínqua, porto de outras águas, de outra língua. Contava entusiasta os pormenores da viagem: as inconveniências da segurança dos aeroportos, a hospedeira de sorriso bonito, a viagem de comboio, o céu tão azul, o sol radioso. Só mesmo em Portugal! E estamos no Inverno!
Ela não o ouvia e o amor calava-lhe as palavras. Olhava-o simplesmente, avaliando os efeitos da ausência, comparando as alterações que o tempo tinha produzido.
Três anos podem transformar uma paisagem, quanto mais um homem, pensava ela enquanto aguardava na estação. A espera permitiu-lhe desembaraçar a meada de recordações: o sorriso fácil, as lágrimas contidas, as outras, em cascata, o cheirinho dos cabelos dele, o dia em que partiu, a despedida, o último beijo. Agora receava que tudo fosse diferente. As suas reservas tinham origem no tom monocórdico e na voz entediada que ele ultimamente usava ao telefone. Ouvia o barulho d’A Grande Cidade lá ao fundo, por trás das poucas palavras dele. Um ruído caótico, que a distraía, que a impedia, talvez pelo medo da verdade, ou da mentira, de perguntar o essencial. Pousava o telefone e arrumava a inquietação. Vai tudo correr bem, pensava, na esperança de que tal pensamento iludisse o receio.
Dezembro. O telefone ecoou na casa vazia. O gravador de mensagens desempenhou o seu papel: “Deixe a sua mensagem…”. Primeiro um silêncio de hesitação, depois, quase envergonhada, a voz dele fez-se ouvir, “é para dizer que vou aí passar o Natal”.
Os telefonemas seguintes vieram confirmar a apreensão dela. Algo de errado se escondia a cada “está tudo bem, não te preocupes”, mas descansava-a a pertinência da viagem. Afinal era Natal e há três anos que ele não vinha cá. Desta vez a sua solidão seria adiada.


A Grande Cidade tinha cumprido o seu papel. Engolira-o inteiro. O contrato prometido que o tinha aliciado a partir, atirou-o para a cave húmida de uma lavandaria de hotel, entre ácidos, detergentes e vapores tóxicos que a sua condição de asmático desaconselhava. Ao fim de um mês vacilou. Agarrou nuns quantos casacos de pele em que a lavandaria era pródiga e vendeu-os ao desbarato para sobreviver. Valeu-lhe o estúdio de um prédio devoluto, cuja demolição um dos inquilinos embargara judicialmente. Ali se alojou clandestinamente com a conivência do dito inquilino, enquanto o processo decorria nos tribunais.
Fosse por comiseração ou por acaso sentimental quis o destino que o inquilino tomasse por ele afeição. Deu-lhe emprego na pequena empresa de montagem de tectos falsos de que era sócio trabalhador. Contrato na mão, requisitos sociais cumpridos, lá aprendeu o ofício de falsear tectos.
Passaram três anos. O dinheiro era escasso e o sonho de um futuro auspicioso desvanecido. Tinha vergonha de admitir o fracasso e, quando telefonava para casa, a pequena firma onde trabalhava ganhava dimensões empresariais, o prédio devoluto onde vivia transformava-se em condomínio privado e, na garagem, estacionava um carro imaginário.
Mas a realidade era feita de bruma e nevoeiro. A Grande Cidade também. O “smog” instalara-se-lhe na alma. Catatónico, sonhava acordado com os campos solarengos da sua aldeia beirã. Doía-lhe a saudade de um simples “bom dia”, de um bom dia português. Mas o pior de tudo, a altura mais dramática, era a época de Natal. Ficava prostrado e recolhia-se num pub cavernoso destilando a desventura numa zurrapa irlandesa, que ainda assim lhe levava as parcas libras de uma semana de trabalho.
Embora crente, nunca foi dado a práticas religiosas e a tradição natalícia esgotava-se na ementa melhorada. É verdade que quando era rapazito levava muito a sério os rituais e até houve uma vez que representou o pastor num Presépio Vivo que o padre da freguesia organizou, mas depois a vida empederniu-lhe os sentimentos. Porém, este ano, o espírito de Natal devolveu-lhe uma espécie de esperança anunciada. Um novo rumo. Desta vez ia ser diferente e percebeu-o quando sobrevoou pela última vez a Grande Cidade. Sem remorsos nem tristeza.

Noite de Natal. Póvoa de Santo António. O frio intenso já recolheu os retardatários. No largo arde abandonado um tronco de carvalho.Numa casa térrea, ligeiramente afastada, a luz ténue da lareira deixa entrever duas silhuetas sentadas à mesa. Um homem e uma mulher riem e trocam afagos como amantes em jantar romântico. Dois copos unem-se delicadamente. Tchim-tchim:
- Um Feliz Natal mãe.
- Um Feliz Natal filho.

sábado, dezembro 16, 2006

Desafio...


Um jovem rei foi surpreendido pelo monarca do reino vizinho, enquanto caçava furtivamente no bosque deste. O Rei (vizinho) poderia tê-lo matado no acto, pois tal era o castigo para quem violasse as leis da propriedade. Contudo, comovido pela juventude e simpatia do prevaricador ofereceu-lhe a liberdade, desde que, no prazo de um ano, trouxesse a resposta a uma pergunta difícil.
A pergunta era: O que realmente querem as mulheres ?
Semelhante pergunta deixaria perplexo até o homem mais sábio, e ao jovem rei pareceu-lhe impossível responder. Contudo aquilo era melhor do que a morte, de modo que regressou ao seu reino e começou a interrogar as pessoas.
A princesa, a rainha, as prostitutas, os monges, os sábios, o palhaço da corte, em suma, todos, e ninguém soube dar uma resposta convincente.
Porém todos o aconselharam a consultar a velha bruxa, porque somente ela saberia a resposta. O preço seria alto, já que a velha bruxa era famosa em todo o reino pelo exorbitante preço que cobrava pelos seus serviços.
Chegou o último dia do acordo e o jovem rei não teve outro remédio senão recorrer à feiticeira. Ela aceitou dar-lhe uma resposta satisfatória com uma condição: primeiro teria que aceitar o seu preço.
Ela queria casar-se com o cavaleiro mais nobre da sua corte, que por coincidência era o seu amigo mais intimo. O jovem rei olhou-a horrorizado: era feíssima, tinha só um dente, fedia que causava náuseas, fazia ruídos obscenos. Nunca havia deparado com uma criatura tão repugnante. Hesitou diante da perspectiva de pedir ao seu melhor amigo para assumir aquele terrível destino.
Não obstante, ao inteirar-se do pacto proposto, o cavaleiro afirmou que não era um sacrifício excessivo em troca da vida de seu melhor amigo.
Então, a bruxa, de sabedoria infernal, afirmou: "O que realmente as mulheres querem é serem soberanas de suas próprias vidas!"
Todos souberam naquele instante que a feiticeira tinha dito uma grande verdade e que o jovem rei estaria salvo.
Assim foi. Ao ouvir a resposta, o monarca vizinho devolveu-lhe a liberdade. Porém, que bodas tristes foram aquelas. Toda a corte assistiu e ninguém se sentiu mais desgarrado, entre o alívio e a angústia, do que o jovem rei.
O cavaleiro, entretanto, mostrou-se cortês, gentil e respeitoso com a sua consorte. A velha bruxa usou de seus piores hábitos, comeu sem usar talheres, emitiu ruídos e um mau cheiro espantoso.
Chegou a noite de núpcias. Quando o recente marido, já preparado para ir para a cama aguardava sua esposa, ela apareceu como a mais linda e charmosa mulher que um homem poderia imaginar! O cavaleiro ficou estupefacto e perguntou-lhe que transformação era aquela.
A jovem respondeu-lhe com um sorriso doce. Como tinha sido cortês com ela, em metade do tempo apresentar-se-ia com um aspecto horrível e na outra metade com o aspecto de uma linda donzela. Então, ela perguntou qual ele preferiria para o dia e qual para a noite? Que pergunta cruel! O marido apressou-se a fazer cálculos...
Poderia ter uma jovem adorável durante o dia para exibir aos seus amigos e, à noite, na privacidade de seu quarto uma bruxa horrenda ou ter de dia uma bruxa inconveniente e à noite, nos momentos íntimos de sua vida conjugal, uma linda e deliciosa jovem .

DEIXO-VOS O DESAFIO. VOCÊS O QUE TERIAM PREFERIDO? O QUE TERIAM ESCOLHIDO? SEJAM SINCEROS.
Boas bicadas

sexta-feira, dezembro 15, 2006

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Uma conversa de Natal


Uma família feliz está à mesa a jantar, quando o filho interrompe e pede para fazer uma pergunta:
- Pai, quantos tipos de seios existem?
O pai, um tanto surpreendido, responde:
- Bem meu filho, existem três tipos de seios. Aos 20 anos a mulher tem seios como mel, são firmes e redondos. Dos 30 aos 40 eles são como peras, ainda belos, porém um pouco caídos... aos 50 os seios ficam como cebolas...
- Cebolas?! Exclama o filho.
- Sim. Quando olhas para eles ficas com vontade de chorar!
Esta explicação deixa mãe e filha um tanto desconcertadas. Então a filha pergunta:
- Mãe também posso fazer uma pergunta, um tanto pessoal?
- Podes!
- Mãe, quantos tipos de pénis existem?
A mãe não hesita:
- Bem filha, um homem passa por três fases distintas. Aos 20 anos o pénis é como um tronco de pinheiro, respeitável e firme. Dos 30 aos 40 anos o pénis é como o chorão, flexível mas confiável. Após os 50 anos o pénis fica como uma árvore de Natal.
- Árvore de Natal?! Pergunta a filha.
- Isso mesmo. Morto da raiz até à ponta e as bolas ficam penduradas como decoração! E o pior: só se arma uma vez por ano!!!

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Crónicas da Galinha Riça - O Natal

No pretérito dia 1 de Dezembro, o Pai-Natal apresentou na Câmara Municipal uma exposição em que alertava as entidades competentes para a possibilidade de não estarem reunidas em Canas de Senhorim as condições necessárias para o cabal desempenho do exercício das suas funções, isto é, a distribuição do Cabaz Natalício.
Entre outros considerandos, denunciava a fraca iluminação da vila e o estado deplorável em que se encontram passeios e ruas. Vejo mal e o reumatismo ataca-me as pernas. Se a tarefa de distribuir os presentes de Natal em condições favoráveis já é de difícil execução, quanto mais confrontado com o estado lastimoso em que se encontram os acessos daquela vila, declarava a certa altura no documento.
Terminava afirmando que, se nada fosse feito para alterar tal estado de coisas, poderiam os canenses ver-se privados da visita do Pai-Natal, circunstância que poderia trazer consequências inimagináveis e da qual declinava qualquer responsabilidade.

Do gabinete da Presidência da Câmara foi despachado ofício dirigido ao Pai-Natal, cujo conteúdo passo a transcrever:

São Nicolau
Eminência:

No respeito pelos valores da tradição Cristã, incumbe-me esclarecer Vossa Eminência que a apreensão traduzida em exposição dirigida a esta Câmara foi por mim antecipada em Maio do corrente ano.
Assim, consciente dos problemas apontados e da consternação que daí podia advir, disponibilizei à entidade competente uma verba considerável, de forma a colmatar as dificuldades referidas e obviar previsíveis inconvenientes.
Por imperativos ou prioridades que só os responsáveis daquela vila poderão explicar, a verba foi canalizada para outros fins que não os que justificaram tal reforço financeiro, designadamente a construção de um anfiteatro e a organização de uma semana de “forrobodó”, porventura legítimos, mas destituídos do carácter urgente que se impunha considerar.
Contudo, conhecendo o sentimento muito pouco natalício que os canenses nutrem pelo seu município, afigura-se-me catastrófica a possibilidade de Canas de Senhorim ficar privada da visita do Pai-Natal pelos motivos invocados.
Nesta conformidade, sugiro humildemente a Vossa Eminência que convoque os canenses a concentrarem-se no anfiteatro na noite de 24 de Dezembro, em hora a determinar, para aí poderem receber ordeiramente os seus presentes de Natal.
A zona de concentração sugerida foi criteriosamente seleccionada e satisfaz os requisitos previamente determinados para a execução de tão nobre tarefa: Boa visibilidade nocturna, arruamento espaçoso e devidamente pavimentado, passeios largos e rotunda acautelada para manobrar as renas de que Vossa Eminência é mui digno proprietário.
Julgando assim obviar maiores inconvenientes, subscrevo-me atenciosamente endereçando votos de um Feliz Natal.(Assinatura ilegível).

Pois é, meus caros conterrâneos. Este ano, presentinhos, só para os lados da piscina.

Bons repenicos

segunda-feira, dezembro 04, 2006

As Quatro-Esquinas



Cai a tarde nas Quatro-Esquinas. O vazio amputado de uma das fachadas é como um bocado arrancado de mim. É um pouco da minha história que se esvai, que se perde irremediavelmente, como perdidas estão outras memórias de outros tempos e de outros lugares. Este largo soalheiro anuncia agora o peso da modernidade e do progresso, e as esquinas, outrora cúmplices dos meus passos de catraia exploradora, remetem-me agora para outros passeios.
Aos domingos, pela mão da minha tia, lá íamos vaidosas ao Café Rossio, ex-libris da terra, onde o café era mais café. Eu, na mira do “rajá” prometido, ela, de rapaz promissor. O Sr. António João, bem-humorado, atirava um piropo amoroso à minha tia, do género “ainda dizem que as flores não andam”, enquanto escolhia meticulosamente os grãos de café. Primeiro espalhava-os numa bandeja de servir à mesa (naquele tempo um simples café tinha honras de bandeja e empregado de laço). Depois, munido de artes que só ele dominava, esticava o dedo indicador e exercia a sua justiça ao lote, “tu para aqui, tu para ali e tu vais fora”. Que cheirinho emanava do café que o Pedro trazia para a mesa, após aquela selecção.
Às vezes também íamos aos sábados. Creio que na altura se trabalhava aos sábados de manhã, mas, mesmo assim, a minha tia lá arranjava tempo para ir à bica, devidamente acompanhada pelo salvo-conduto, que era eu. Não pensem que nessa altura, as moças casadoiras se livravam de censuras e reparos se ousassem frequentar sozinhas o Café (se calhar, ainda hoje sobrevive, nalgumas mentes, essa reprovação). Ora, para obviar tal desaprovação social, nada melhor que uma sobrinha como livre-trânsito para realçar o pudor. Era aí que entrava eu, no meu vestidinho de chita e sandália domingueira. Depois de inspeccionada até às profundezas do lóbulo auricular, não fosse a menina comprometer o bom-nome da família com alguma crosta de surro pespegada à tez, “ala que se faz tarde”, aprovava a minha tia em ânsias de rapariga solteira.
Despachado o “rajá”, cirandava por entre as mesas de tampo em mármore escuro e cadeiras em madeira castanha, confortavelmente resistentes ao meu baloiçar de menina. Sentados ao fundo, nas poltronas, senhores distintos, discutindo assuntos sérios, enchiam a minha imaginação de tramas e conspirações, pois os tempos eram conturbados e o local discretamente apropriado. O Professor, muito cioso da sua pochette, conjurava intrigas revolucionárias no conforto da lareira granítica. Comunista devoto, anunciava aos convivas golpes e contra-golpes a cada artigo do jornal. Os jornais eram a sua cartilha. Solitário e indiferente aos remoques políticos, o Artista, fechado na sua habitual gabardina, fumava pesaroso. Na sua loucura inofensiva, distinguia-se pela pose sobranceira e pela boquilha dourada, da qual, a espaços, retirava citações poéticas. No bilhar, senhores mundanos, de fato e gravata baratos, trocavam impressões sobre fortunas perdidas no casino da Figueira.
Fascinavam-me a mesa de bilhar e as carambolas conseguidas por aqueles senhores perfumados. Gostavam de se meter comigo e eu fazia-lhes o gosto empurrando-lhes levemente o taco no pico da concentração. “O raio da miúda!”, praguejavam, enquanto eu, pernas para que vos quero, escapulia ágil por entre as cadeiras e estacionava junto às montras, a namorar os bonequinhos, as garrafinhas, os livros aos quadradinhos, os chocolates e os rebuçados. Só o Mário Pica, na sua tonteira plácida, me tirava do deslumbramento. Mãos atrás das costas, corpo dobrado para a frente, sorriso seráfico, percorria as mesas do café na esperança de um cigarro ou de uma beata esquecida. Menino grande sem condição, aprendeu a sorrir porque sim, e nunca mais se esqueceu.
Também ali se faziam e desfaziam namoros, se davam e devolviam fotografias, se prometiam noivados e juras de casamento, para gáudio do Sr. Pinga das Gordas, que via assim assegurados os proventos de fotógrafo oficial da terra. Por entre bilhetinhos trocados à socapa e intimidades disfarçadas, sempre havia tempo para tentar a fortuna que o Sr. Acúrcio, o cauteleiro, garantia em duodécimos. “Ele há horas de sorte...”, apregoava, ainda que ciente do seu próprio infortúnio e da maleita que lhe tolhia os membros.
Quando a minha irrequietude ultrapassava os limites que a minha tia considerava adequados, era remetida para os banquinhos de ripas vermelhas do terreiro da capela. Bem que eu queria misturar-me com os rapazes da minha idade que por ali jogavam à bola, mas o olhar reprovador da minha tia e o vestido imaculado desaconselhavam qualquer ousadia. Ali ficava, joelhos juntinhos, como a minha mãe me tinha ensinado, apreciando o cheirinho da fruta que o Sr. António e a Menina Natália dispunham à porta do Lugar, as senhoras da Varanda da Má Língua, que desconheciam os ensinamentos da minha mãe, o Sr. Pereirinha, muito dono do parqueamento do seu Mercedes, a loja do Sr. Alberto e da Dona Eracema, onde a mãe fazia as compras, a padaria do Sr. César, que vendia a melhor broa do mundo, a Socolar, onde se alinhavam aqueles “dossiers” fantásticos de argolas, novidade na época, que ainda preservo algures no sótão, o Café Belcanto e as filhas do dono, por sinal muito bem criadas, o Sr. Pinheira da Barbearia eternamente à conversa com o Sr. Jorge da Farmácia e, fascínio dos fascínios, o colorido atrevido dos vestidos curtos das mulatas hospedadas na Pensão Monteiro, vítimas da descolonização das províncias africanas, autênticas impalas fora do habitat, tentando, com o brilho sedoso que lhes emergia dos corpos, ofuscar frios desconhecidos e disfarçar mágoas passadas.
Se fosse por altura dos Santos Populares ainda podia assistir ao despautério de alguma senhora do Rossio de Baixo, retardada na recolha dos vasos que uns “bandidos”, pela calada da noite, como manda a tradição, deixaram a embelezar os passeios das Quatro-Esquinas. “Então, os vasos ganharam pernas?”, perguntava o Sr. António João, “ganharam pernas o carvalho”, respondia esbaforida a senhora. Ruborizava a minha tia, ria a plateia e consolava-me eu, autorizada pelas circunstâncias a registar os palavrões proibidos.
Noutras alturas quebrava-se o encanto. A loucura instalava-se no largo, personificada na herança dramática da guerra do ultramar. O ex-soldado, se bem me lembro, maqueiro de profissão, de tanto mutilado carregar, acabou amputado do juízo e baralhado no cenário. A epilepsia tomava conta dele e as Quatro-Esquinas transformavam-se em palco de batalhas sangrentas e os transeuntes em inimigos emboscados. Espumava ordens e desacertos para incómodo dos presentes e desespero da sua mãe que acorria ao largo, suplicando humildemente que lhe internassem o filho. Carregava sozinha, ainda, uma guerra acabada.
Intimidava-me o infortúnio do soldado-maqueiro e então, apertadinha de xixi que o medo tornara premente, traçava uma linha recta entre o terreiro da capela e a porta do Café-Rossio e corria desenfreada para o aconchego do café. Deixava para trás o largo e o passado que agora me ocorre.

***

Cai a tarde. Num banco do terreiro da capela de S. Sebastião estendo o olhar de esquina a esquina, reconstruo alçados e montras, retenho cheiros e sons, e recordo carinhosamente as pessoas que habitaram as Quatro-Esquinas da minha meninice.


Cristalinda