segunda-feira, dezembro 04, 2006

As Quatro-Esquinas



Cai a tarde nas Quatro-Esquinas. O vazio amputado de uma das fachadas é como um bocado arrancado de mim. É um pouco da minha história que se esvai, que se perde irremediavelmente, como perdidas estão outras memórias de outros tempos e de outros lugares. Este largo soalheiro anuncia agora o peso da modernidade e do progresso, e as esquinas, outrora cúmplices dos meus passos de catraia exploradora, remetem-me agora para outros passeios.
Aos domingos, pela mão da minha tia, lá íamos vaidosas ao Café Rossio, ex-libris da terra, onde o café era mais café. Eu, na mira do “rajá” prometido, ela, de rapaz promissor. O Sr. António João, bem-humorado, atirava um piropo amoroso à minha tia, do género “ainda dizem que as flores não andam”, enquanto escolhia meticulosamente os grãos de café. Primeiro espalhava-os numa bandeja de servir à mesa (naquele tempo um simples café tinha honras de bandeja e empregado de laço). Depois, munido de artes que só ele dominava, esticava o dedo indicador e exercia a sua justiça ao lote, “tu para aqui, tu para ali e tu vais fora”. Que cheirinho emanava do café que o Pedro trazia para a mesa, após aquela selecção.
Às vezes também íamos aos sábados. Creio que na altura se trabalhava aos sábados de manhã, mas, mesmo assim, a minha tia lá arranjava tempo para ir à bica, devidamente acompanhada pelo salvo-conduto, que era eu. Não pensem que nessa altura, as moças casadoiras se livravam de censuras e reparos se ousassem frequentar sozinhas o Café (se calhar, ainda hoje sobrevive, nalgumas mentes, essa reprovação). Ora, para obviar tal desaprovação social, nada melhor que uma sobrinha como livre-trânsito para realçar o pudor. Era aí que entrava eu, no meu vestidinho de chita e sandália domingueira. Depois de inspeccionada até às profundezas do lóbulo auricular, não fosse a menina comprometer o bom-nome da família com alguma crosta de surro pespegada à tez, “ala que se faz tarde”, aprovava a minha tia em ânsias de rapariga solteira.
Despachado o “rajá”, cirandava por entre as mesas de tampo em mármore escuro e cadeiras em madeira castanha, confortavelmente resistentes ao meu baloiçar de menina. Sentados ao fundo, nas poltronas, senhores distintos, discutindo assuntos sérios, enchiam a minha imaginação de tramas e conspirações, pois os tempos eram conturbados e o local discretamente apropriado. O Professor, muito cioso da sua pochette, conjurava intrigas revolucionárias no conforto da lareira granítica. Comunista devoto, anunciava aos convivas golpes e contra-golpes a cada artigo do jornal. Os jornais eram a sua cartilha. Solitário e indiferente aos remoques políticos, o Artista, fechado na sua habitual gabardina, fumava pesaroso. Na sua loucura inofensiva, distinguia-se pela pose sobranceira e pela boquilha dourada, da qual, a espaços, retirava citações poéticas. No bilhar, senhores mundanos, de fato e gravata baratos, trocavam impressões sobre fortunas perdidas no casino da Figueira.
Fascinavam-me a mesa de bilhar e as carambolas conseguidas por aqueles senhores perfumados. Gostavam de se meter comigo e eu fazia-lhes o gosto empurrando-lhes levemente o taco no pico da concentração. “O raio da miúda!”, praguejavam, enquanto eu, pernas para que vos quero, escapulia ágil por entre as cadeiras e estacionava junto às montras, a namorar os bonequinhos, as garrafinhas, os livros aos quadradinhos, os chocolates e os rebuçados. Só o Mário Pica, na sua tonteira plácida, me tirava do deslumbramento. Mãos atrás das costas, corpo dobrado para a frente, sorriso seráfico, percorria as mesas do café na esperança de um cigarro ou de uma beata esquecida. Menino grande sem condição, aprendeu a sorrir porque sim, e nunca mais se esqueceu.
Também ali se faziam e desfaziam namoros, se davam e devolviam fotografias, se prometiam noivados e juras de casamento, para gáudio do Sr. Pinga das Gordas, que via assim assegurados os proventos de fotógrafo oficial da terra. Por entre bilhetinhos trocados à socapa e intimidades disfarçadas, sempre havia tempo para tentar a fortuna que o Sr. Acúrcio, o cauteleiro, garantia em duodécimos. “Ele há horas de sorte...”, apregoava, ainda que ciente do seu próprio infortúnio e da maleita que lhe tolhia os membros.
Quando a minha irrequietude ultrapassava os limites que a minha tia considerava adequados, era remetida para os banquinhos de ripas vermelhas do terreiro da capela. Bem que eu queria misturar-me com os rapazes da minha idade que por ali jogavam à bola, mas o olhar reprovador da minha tia e o vestido imaculado desaconselhavam qualquer ousadia. Ali ficava, joelhos juntinhos, como a minha mãe me tinha ensinado, apreciando o cheirinho da fruta que o Sr. António e a Menina Natália dispunham à porta do Lugar, as senhoras da Varanda da Má Língua, que desconheciam os ensinamentos da minha mãe, o Sr. Pereirinha, muito dono do parqueamento do seu Mercedes, a loja do Sr. Alberto e da Dona Eracema, onde a mãe fazia as compras, a padaria do Sr. César, que vendia a melhor broa do mundo, a Socolar, onde se alinhavam aqueles “dossiers” fantásticos de argolas, novidade na época, que ainda preservo algures no sótão, o Café Belcanto e as filhas do dono, por sinal muito bem criadas, o Sr. Pinheira da Barbearia eternamente à conversa com o Sr. Jorge da Farmácia e, fascínio dos fascínios, o colorido atrevido dos vestidos curtos das mulatas hospedadas na Pensão Monteiro, vítimas da descolonização das províncias africanas, autênticas impalas fora do habitat, tentando, com o brilho sedoso que lhes emergia dos corpos, ofuscar frios desconhecidos e disfarçar mágoas passadas.
Se fosse por altura dos Santos Populares ainda podia assistir ao despautério de alguma senhora do Rossio de Baixo, retardada na recolha dos vasos que uns “bandidos”, pela calada da noite, como manda a tradição, deixaram a embelezar os passeios das Quatro-Esquinas. “Então, os vasos ganharam pernas?”, perguntava o Sr. António João, “ganharam pernas o carvalho”, respondia esbaforida a senhora. Ruborizava a minha tia, ria a plateia e consolava-me eu, autorizada pelas circunstâncias a registar os palavrões proibidos.
Noutras alturas quebrava-se o encanto. A loucura instalava-se no largo, personificada na herança dramática da guerra do ultramar. O ex-soldado, se bem me lembro, maqueiro de profissão, de tanto mutilado carregar, acabou amputado do juízo e baralhado no cenário. A epilepsia tomava conta dele e as Quatro-Esquinas transformavam-se em palco de batalhas sangrentas e os transeuntes em inimigos emboscados. Espumava ordens e desacertos para incómodo dos presentes e desespero da sua mãe que acorria ao largo, suplicando humildemente que lhe internassem o filho. Carregava sozinha, ainda, uma guerra acabada.
Intimidava-me o infortúnio do soldado-maqueiro e então, apertadinha de xixi que o medo tornara premente, traçava uma linha recta entre o terreiro da capela e a porta do Café-Rossio e corria desenfreada para o aconchego do café. Deixava para trás o largo e o passado que agora me ocorre.

***

Cai a tarde. Num banco do terreiro da capela de S. Sebastião estendo o olhar de esquina a esquina, reconstruo alçados e montras, retenho cheiros e sons, e recordo carinhosamente as pessoas que habitaram as Quatro-Esquinas da minha meninice.


Cristalinda

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