
Primeiro deram as mãos, as duas, no jeito simples de quem se contempla. Depois trocaram os beijos e as lágrimas que a saudade impunha.
Ele trazia nos olhos o nevoeiro da Grande Cidade, longínqua, porto de outras águas, de outra língua. Contava entusiasta os pormenores da viagem: as inconveniências da segurança dos aeroportos, a hospedeira de sorriso bonito, a viagem de comboio, o céu tão azul, o sol radioso. Só mesmo em Portugal! E estamos no Inverno!
Ela não o ouvia e o amor calava-lhe as palavras. Olhava-o simplesmente, avaliando os efeitos da ausência, comparando as alterações que o tempo tinha produzido.
Três anos podem transformar uma paisagem, quanto mais um homem, pensava ela enquanto aguardava na estação. A espera permitiu-lhe desembaraçar a meada de recordações: o sorriso fácil, as lágrimas contidas, as outras, em cascata, o cheirinho dos cabelos dele, o dia em que partiu, a despedida, o último beijo. Agora receava que tudo fosse diferente. As suas reservas tinham origem no tom monocórdico e na voz entediada que ele ultimamente usava ao telefone. Ouvia o barulho d’A Grande Cidade lá ao fundo, por trás das poucas palavras dele. Um ruído caótico, que a distraía, que a impedia, talvez pelo medo da verdade, ou da mentira, de perguntar o essencial. Pousava o telefone e arrumava a inquietação. Vai tudo correr bem, pensava, na esperança de que tal pensamento iludisse o receio.
Dezembro. O telefone ecoou na casa vazia. O gravador de mensagens desempenhou o seu papel: “Deixe a sua mensagem…”. Primeiro um silêncio de hesitação, depois, quase envergonhada, a voz dele fez-se ouvir, “é para dizer que vou aí passar o Natal”.
Os telefonemas seguintes vieram confirmar a apreensão dela. Algo de errado se escondia a cada “está tudo bem, não te preocupes”, mas descansava-a a pertinência da viagem. Afinal era Natal e há três anos que ele não vinha cá. Desta vez a sua solidão seria adiada.
A Grande Cidade tinha cumprido o seu papel. Engolira-o inteiro. O contrato prometido que o tinha aliciado a partir, atirou-o para a cave húmida de uma lavandaria de hotel, entre ácidos, detergentes e vapores tóxicos que a sua condição de asmático desaconselhava. Ao fim de um mês vacilou. Agarrou nuns quantos casacos de pele em que a lavandaria era pródiga e vendeu-os ao desbarato para sobreviver. Valeu-lhe o estúdio de um prédio devoluto, cuja demolição um dos inquilinos embargara judicialmente. Ali se alojou clandestinamente com a conivência do dito inquilino, enquanto o processo decorria nos tribunais.
Fosse por comiseração ou por acaso sentimental quis o destino que o inquilino tomasse por ele afeição. Deu-lhe emprego na pequena empresa de montagem de tectos falsos de que era sócio trabalhador. Contrato na mão, requisitos sociais cumpridos, lá aprendeu o ofício de falsear tectos.
Passaram três anos. O dinheiro era escasso e o sonho de um futuro auspicioso desvanecido. Tinha vergonha de admitir o fracasso e, quando telefonava para casa, a pequena firma onde trabalhava ganhava dimensões empresariais, o prédio devoluto onde vivia transformava-se em condomínio privado e, na garagem, estacionava um carro imaginário.
Mas a realidade era feita de bruma e nevoeiro. A Grande Cidade também. O “smog” instalara-se-lhe na alma. Catatónico, sonhava acordado com os campos solarengos da sua aldeia beirã. Doía-lhe a saudade de um simples “bom dia”, de um bom dia português. Mas o pior de tudo, a altura mais dramática, era a época de Natal. Ficava prostrado e recolhia-se num pub cavernoso destilando a desventura numa zurrapa irlandesa, que ainda assim lhe levava as parcas libras de uma semana de trabalho.
Embora crente, nunca foi dado a práticas religiosas e a tradição natalícia esgotava-se na ementa melhorada. É verdade que quando era rapazito levava muito a sério os rituais e até houve uma vez que representou o pastor num Presépio Vivo que o padre da freguesia organizou, mas depois a vida empederniu-lhe os sentimentos. Porém, este ano, o espírito de Natal devolveu-lhe uma espécie de esperança anunciada. Um novo rumo. Desta vez ia ser diferente e percebeu-o quando sobrevoou pela última vez a Grande Cidade. Sem remorsos nem tristeza.
Noite de Natal. Póvoa de Santo António. O frio intenso já recolheu os retardatários. No largo arde abandonado um tronco de carvalho.

- Um Feliz Natal mãe.
- Um Feliz Natal filho.