quarta-feira, maio 30, 2007

Provocação 3

Quando se trata de sexo, as mulheres precisam de uma razão; os homens precisam de um lugar. Allan Pease, psicólogo.

terça-feira, maio 22, 2007

Diálogos Encrespados. Na Esplanada.


- Apetece-me quando chove.
(sorriso)
- Pois. Quem anda à chuva fica toda molhadinha…
(risos)
- Ó M. essa é de caserna. É verdade, quando chove apetece-me fazer amor.
- Sexo. Apetece-te é fazer sexo amiga.
- Lá estás tu a separar as águas. Eu preciso de ambos, volteio a caldeira e não me tenho dado mal.
- Já sei. Já sei que consegues pôr amor em tudo o que mexe. És uma depravada do amor.
(sorrisos)
- Não é bem assim. Convenço-me disso para… para… deixar fluir a volúpia, digamos assim.
- É lá, fluir a volúpia! Fluir a volúpia é cá um xarope!
(risos)
- Eu gostava de ser como tu, hedonista militante.
- Hedonista militante és tu, ou não fosse essa combustão de amor e sexo o prazer supremo. Eu fico bastante aquém nessa escala dos sentidos. O amor arrepia. É absoluto prazer. E eu ando muito afastada desses encrespanços.
- Muitas vezes dói. Onde é que está o prazer aí? Nem os masoquistas gostam do género.
- Ai gostam gostam, que conheço alguns que sim. Mas tens razão, o amor é uma canseira nesta coisa do prazer.
(pausa)
- O sexo dá pano para mangas...
- A não ser que o tecido não chegue.
(risos)
- Depois faz bem à saúde e não está sujeito a IVA.
- Nem a IRS.
(silêncio)


- Para ser sincera há já algum tempo que a toca não vê coelho.
(risos)

segunda-feira, maio 21, 2007

Os Escritos de Luna


“Os Escritos de Luna” chegaram-me pela mão de uma amiga. Este espólio é constituído por oito cadernos “Ambar” de cor preta, formato A5, e várias folhas soltas de apontamentos e rascunhos. “Oito cantos de uma vida”, como a minha amiga gosta de lhes chamar. Tudo escrito à mão. À minha amiga tinham-lhe chegado de forma dramática.
A autora dos “Escritos” sabia da sua precária existência e premeditou a sua morte em cada ponto final dos seus escritos. Nunca usou reticências. Nasceu em 1963 e faleceu de doença cancerígena em 2003. “Todos nós, pelo menos uma vez na vida, somos abandonados”, (apont. fl.42).
Não a conheci pessoalmente mas a avaliar pelo testemunho da minha amiga e pelas palavras que deixou nos “Escritos”, posso dizer que fiquei completamente apaixonada pela lucidez e coragem desta mulher. Só pensava em chegar a casa para transpor os textos para o computador e deliciar-me demoradamente a pesar as frases e as palavras. Um testemunho avassalador de amor e vida. Puro e duro.
Depois de organizar os vários cadernos e outros apontamentos da autora, consegui perceber os meandros da sua existência e penetrar nas suas emoções. Apercebi-me comovida da angústia disfarçada que se escondia por trás da letra serena e bem desenhada. Uma dor contida no correr da caneta.
Sabia de antemão que os “Escritos de Luna” eram auto-biográficos, porém estão escritos em forma de romance e narrados na terceira pessoa. A autora confunde-se com a narradora, e esta com Luna, mas, a espaços, subtrai-se desta, como se recusasse para ela o vaticínio que já tinha predestinado à personagem e que no fundo configurava a inevitabilidade do seu próprio fim, “Escrevo durante a noite para afugentar a ideia da morte”, (Escritos de Luna cad.4 pag.44).
Curiosamente, também algumas personagens que acompanham e interagem com Luna reflectem a própria autora. Dá-lhes o seu próprio corpo e veste-as com a sua alma. Em todas há um tudo dela.
Os “Escritos” só têm fim. O caderno oito é derradeiro, “Pode-se reescrever a história, mas não se pode reescrever a vida.”,(Escritos de Luna cad.8 pag.67). Todo o resto é anacrónico e sem método, escrito na urgência de verter para o papel as memórias que se esvaíam ao sabor das injecções de morfina.
Tentei organizá-los de maneira a perceber o percurso desta mulher caleidoscópio, reflexo das várias que habitam os “Escritos”. A tarefa foi difícil e, provavelmente, não corresponde exactamente ao trabalho que a minha amiga pretendia: dar-lhe uma forma coerente para que o filho da autora, quando chegar a altura certa, possa conversar com a mãe, para que ela possa amá-lo e ser amada na medida das palavras que lhe deixou. Creio que ao ter conhecimento da doença sentiu necessidade de deixar o seu testemunho de vida ao filho, “Foi para poder continuar a falar contigo meu menino lindo. Para que não te sintas só na incongruência do mundo. Para que saibas que nasceste de forma bela e que és algo realmente verdadeiro que ela deixou ao mundo.”, (Escritos de Luna cad.9 pag.67).
À filha, que nasceu morta, de aborto espontâneo, dedicou grande parte do caderno 5, num relato intenso e implacável, “Espoliada da própria alma nesse acto inútil de parir. Uma dor sem retorno, senão novamente a dor. Esvaziada como uma rês a quem se arrancou as entranhas para deitar no lixo. Uma máquina de parir avariada. Uma barriga de aluguer para coisa nenhuma. O escárnio da natureza no corpo pequenino e roxo que lhe escorria do ventre ensanguentado. Do ventre aberto e dilacerado nessa dor animalesca de parir uma negação de futuro. Parir a morte… Somos animais, ponto final. Inventámos a alma e ligámo-la a Deus porque certas dores são demasiado insuportáveis.”, (Escritos de Luna cad.5 pag.60)
Quando alinhei todas as peças do puzzle e reli os “Cadernos” não fiquei surpreendida. Já me tinha apercebido da força do “documento” enquanto lhe dava forma. Estava ali uma obra literária, cuidada no estilo e de contornos narrativos perceptíveis e bem delineados. Podíamos inteirar-nos através do percurso de Luna do panorama social e político dos anos oitenta: a ressaca ideológica da esquerda em que ela orbitava; as mulheres que já se afirmavam socialmente; o entrosamento das vagas universitária dos anos 60, 70 e 80; os missionários do teatro, meio onde ela também se movia; a resistência cultural por oposição ao liberalismo económico ditado pelos senhores do mundo, o consumismo como veículo ilusório da felicidade e da igualdade, etc., etc. Tudo isto é abordado no extremo do seu trajecto de vida...
Embora esta evocação possa parecer soturna os “Escritos” nada têm de tétrico, pesem embora as circunstâncias em que foram escritos. A escrita é pungente, marcada pela dura verdade da vida, sem disfarces, mas serena e inteligente. O discernimento é comovente.
Neste momento a minha amiga é a fiel depositária deste lancinante testemunho de vida. Aguarda que o “filho de Luna” cresça para que dele decida em consciência. Contudo, não se opôs a que eu desse conta de algumas passagens aqui no berloque. Os “Escritos de Luna” ou os “Oito Cantos de Uma Vida”. Um documento sublime que talvez chegue aos escaparates.
Boas minhocas

sexta-feira, maio 18, 2007

Diálogos Crispados. No Kebra.

- Diz meu amor, sou todo ouvidos...
- Todo, todo?
- Vou tentar!
- Então revê-te no silêncio.
(pausa)
- Já disse tanta coisa...
- E já fizeste a tanta coisa que disseste?
- Não.
(silêncio)
- E estás a pensar fazê-lo?
- Sabes, meu amor, pensar e fazer são verbos difíceis...
- Pois são.... mas mais difícil é fazer o que pensamos ser o correcto. Entre o pensar e o fazer há um abismo. Felizes são os que fazem o que realmente pensam.
- Palavras e mais palavras, redondas, inúteis...
- Resposta previsível meu caro! Não te esqueças que foste tu a convidar-me a chafurdar nas palavras. Mas sabes, meu amor, as palavras são máscaras, mostram aquilo que escondem.
- Claro. E mostras o quê nas palavras que escondes?
- O mesmo que tu.
- É tudo tão difícil contigo. Acabas por vergar-me no ardil das palavras...
- E fazes bem em vergar-te, sobretudo se fores para a cama comigo!

quarta-feira, maio 16, 2007

Crónicas da Galinha Riça - O Decepado

Corria o ano de 1476 quando portugueses e castelhanos se defrontaram na batalha de Toro. Conta-se que um tal de Duarte de Almeida, alferes-mor de Afonso V, acossado pelos castelhanos, resistiu heroicamente ao confronto mantendo o estandarte real português nos dentes após diversos golpes do adversário lhe terem decepado os membros superiores e sabe-se lá que outras partes do corpo, não fosse o pudor histórico da heroicidade sensível a descrições mais pormenorizadas.
Mas esta é a história oficial contada aos quadradinhos nos compêndios infantis com que se apela ao patriotismo das criancinhas. Na verdade, os acontecimentos foram muito diferentes, ainda que, como veremos, o resultado tenha sido o mesmo.
Por morte do rei de Castela, D. Henrique IV, O Impotente, casado com D. Joana de Portugal, irmã do nosso rei, D. Afonso V, acusada de ser amante de um tal de D. Béltran de La Cueva, relação que originou o aviltante título de “A Beltraneja” à então infanta Joana, única herdeira ao trono de Castela, ficou a sucessão comprometida, uma vez que, conjuntamente com a impotência, pendia sob D. Henrique IV a suspeita de homossexualidade e sob D. Joana de Portugal a prática de adultério (jeitosos, estes). Perante este regabofe, dividiu-se a nobreza castelhana que impugnou a coroação da infanta Joana, alegadamente filha ilegítima, a favor de sua tia, D. Isabel, irmã de D. Henrique IV.
Ora, o nosso rei, descortinando vantagens para a coroa portuguesa e desconhecedor ainda do célebre ditado “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”, não quis saber destes desvios de alcova. Casa com a sobrinha, a infanta Joana, reclama para si o direito de reinar sobre Portugal e Castela e invade o país vizinho. O desenrolar desta invasão culmina na batalha de Toro, ali para os lados de Zamora, que opôs portugueses e alguns castelhanos que apoiavam a pretensão de Afonso V a castelhanos e aragoneses que apoiavam a irmã de D.Henrique IV, D. Isabel. É verdade que esta união não tinha muitos adeptos por parte de Castela, mas mesmo assim ainda tivemos o apoio de alguns nobres castelhanos que tinham jurado fidelidade à princesa “Beltraneja”. E é aqui que começa a confusão que viria a dar origem à verdadeira história do Decepado.
Naquele tempo as diversas casas nobres, como a do duque de Barcelos ou do Duque de Coimbra, tinham os seus próprios brasões que hasteavam nos respectivos porta-estandartes. Para além de identificar a sua posição no campo de batalha serviam de sinalética para desenvolver estratégias de combate. Dada a presença de alguns nobres castelhanos, fiéis à princesa e aliados de Portugal, na preparação da batalha de Toro, para evitar confusões de cores e garantir a eficácia das manobras, determinou-se que todos os bastiões lutariam debaixo do mesmo pavilhão, o brasão da casa real portuguesa, neste caso o brasão pessoal de D. Afonso V. Porém, à revelia do combinado, um dos bastiões portugueses não acatou tal determinação e integrou um dos flancos do exército português com um estandarte cujo brasão não correspondia nem às cores nem à forma estabelecidas. Ainda hoje não se sabe ao certo, mas alguns historiadores afirmam que tal atitude reflectia um certo sentimento de impunidade de alguns aristocratas que entretanto tinham acumulado poder e constituíam verdadeiros reinos dentro do reino. Seja como for, tenha sido por soberba, incúria ou negligência grosseira, o certo é que o alferes Duarte de Almeida, por inerência, responsável pelo estandarte cujo estranho brasão desirmanava dos demais, foi de imediato bordoado por uma carga de valentes portugueses que no tropel da batalha o julgaram cavaleiro da hoste inimiga. Foi tal o desentendimento que o acossado acabou desmembrado pelos feros golpes dos próprios camaradas de armas. Valeram-lhe os castelhanos que, testemunhando a carnificina e julgando-o dos seus, o recolheram moribundo e lhe pagaram tributo em vida pelo controverso acto de bravura.
A batalha foi um fracasso. Sem honra nem glória os nobres portugueses deram conta a D. Afonso V da história do malogrado Duarte de Almeida. Com a mestria que caracteriza os grandes soberanos o nosso rei viu ali uma oportunidade para que nem tudo tivesse sido em vão. Perdida a honra salve-se o convento, vociferou o monarca.
Todos sabemos que para ultrapassar psicologicamente uma grande derrota são necessárias pequenas vitórias, sobretudo se coloridas com actos heróicos de reconhecida valentia. Foi com este pensamento que o rei ordenou que se voltasse ao campo de batalha aproveitar o desaproveitável para disso fazer glória escrita. Por entre amputações e esquartejamentos arrecadaram-se as preciosas sobras anatómicas dos mutilados que, para orgulho nacional, haveriam de contar a história do Decepado.
Da moral desta história tirai vós as vossas conclusões.

Bons repenicos

quarta-feira, maio 09, 2007

Indecorosamente inconfidente

É muito boa pessoa a Achadiça. Rica de espírito, deliciosamente insubmissa, vaidosa no limite do suportável mas, acima de tudo, travessa da quinta casa.
Já em pequena trazia a família sempre em preocupação e não foram por demais as peregrinações a Fátima na tentativa de a encaminhar. Vou recomendar a menina e pedir a Nossa Senhora que ma guarde, comentava a mãe, prazenteira, ao condutor do autocarro excursionista.
Dessas viagens dava a Achadiça conta ao padre Domingos que, incrédulo, ruborizava no segredo do confessionário e a despachava desconcertado para o acto ineficaz de contrição. Talvez por castigo divino, que isto de usar os santos para fins muito pouco santificados não augura bons resultados, nem a miríade de anjinhos e outras divindades preventivas lhe valeram. Mas que havia ela de fazer!
Naquelas viagens a Fátima ia, em idêntica prece, um rapazola endiabrado, para que a santa desse despacho aos rogos da vizinhança que vivia atormentada pela impetuosidade do cachopo. Depois de chatear meio mundo era um descanso pressenti-lo em recato, na retaguarda do autocarro, à conversa com a nossa menina. Entretidas as crianças, serenavam os excursionistas, longe de imaginar os pecadilhos que tinham lugar nos bancos traseiros. Enfim, nada que a Senhora da Cova da Iria não perdoasse, assim lhe fizessem chegar as respectivas preces.
O rapaz tinha uns olhos grandes, inquietantes, e as mãos, ansiosas, só se aplacavam no corpo da nossa Achadiça. Começou por lhe inspeccionar as tranças mas depressa evoluiu na sindicância. E ela consentia e participava. Dos bancos do autocarro passaram a outros bancos: empréstimo para a casa, compromisso, casamento… deu graças a Deus o padre que confirmou no sacramento do matrimónio a benevolência do Senhor para com aquelas criaturas, tão cedo iniciadas no vício da fornicação.
Mas foi sol de pouca dura. A Achadiça, que não concebia outra forma de psicoterapia, que não aquela intimidade com o bom do padre, certo dia, arremeteu pelo confessionário queixosa e contou o seu drama tim-tim por tim-tim, que é como quem diz, confidenciou em pormenor o acontecido, aliás, aquilo que não estava a acontecer: que antes era assim e assado, de manhã, à tarde e à noite e que agora nada. Quem é que está a pecar agora! Sim, quem é que está a pecar agora, padre? O padre ainda começou por acalmá-la, argumentando o melhor que sabia, mas ela atalhou abruptamente: não me venha com a conversa da procriação, da expiação do desejo ou de outros cuidados doutrinários, que o meu corpo não conhece essa linguagem. Não foi para isto que eu casei. Cá para mim o senhor padre já sabia destas agonias masculinas… foi por isso que me andou a infernizar a vida desde os 16 anos, casa rapariga, casa rapariga, não vês que aos olhos de Deus vives em pecado… e agora, vivo como? Antes não vivia na graça do Senhor e agora vivo sem graça nenhuma, é o que é. Foi para isto que o senhor padre me queria preservada, sempre atrás de nós, armado em inquisidor da moral sexual, casem, casem ou ainda vos acontece uma desgraça… desgraçada estou eu agora. E não me venha com sermões que já não tenho idade nem paciência para discutir o sexo dos anjos consigo, quanto mais o das mulheres? Vou divorciar-me, ai vou vou, pode ser que isto se componha.
O padre deitou as mãos à cabeça. Ó rapariga acalma-te, tens que falar com o teu marido… começaram muito cedo, eu bem vos disse, mas olha que isso às vezes é normal, os homens têm quebras de entusiasmo, se é que assim posso dizer. Olha o pecado da gula, filha, não vês que também é aplicável ao corpo. Tens que ser mais comedida, rapariga. Vais ver que ele recupera o entusiasmo, tentava animá-la o padre. Comedida! Comedida! É isso que tem para me dizer! Ó senhor padre faça-me um favor: vá-se entusiasmar.
Foi a última vez que a Achadiça recorreu ao consultório religioso. A partir daí ganhou uma tal aversão ao altar e ás memórias nubentes que este lhe trazia que nunca mais pôs os pés na igreja. Dizia ela que, se a igreja não serve para salvar o corpo, um bem físico já por demais exposto e tangível, como é que se arvora em salvadora da alma, elemento bem mais complexo? Perdida a crença, aplacada a revolta, ficou o rancor daquele mal de amar. Podia ser pior, salvou-se o casamento, ainda que com muita arrelia e a custo, sabe-se lá, de que mezinhas orientais.
Do resto já sabemos a história, galgou na Internet e desatou a proclamar aos ventos desgraças colectivas, criando a falsa ideia de males generalizados que, lá no fundo, só a afectam a ela. Por isso, faz-me um favor Achadiça: vai-te entusiasmar.

terça-feira, maio 08, 2007

Diálogos encrespados. Na Felgueira.

A Cris agora deu-lhe para a lamentação. Amores perfeitos para aqui, amores imperfeitos para ali, uma coisa que não leva a netos. Anda “crispada” de tão farta, a minha amiga. Nem a primavera a arrebita.
Estou a escrever isto e a pensar nas consequências que podem advir deste texto. Logo agora que ando um pouco ausente e é ela que tem aguentado o galinheiro. Ingrata é o que eu sou. Pronto, aceito.
Mas esta lamechice causa-me fornicoques. Que a malta se queixe de barriga vazia ainda vá que não vá, agora andar aqui a cacarejar de papo cheio, armada em vítima, ai o amor, ai o amor… quase me apetece mandá-la amar para aquele lado que a gente sabe.
Tudo bem, uns textozitos às flores também encaixam, até sabem bem, mas pelo menos que sejam honestos! Se quer escrever sobre desamores desame, não aproveite a eloquência para, de cima dos despojos, a derramar fartura, desancar sobre os desgraçados que lhe enchem a inspiração e outros recantos afortunados.
Disse-me ela este fim-de-semana, adulterando a letra de uma música do Fausto, “grata ventura é queixarmo-nos da muita fartura”. Vinha isto a propósito dos meus textos aqui no berloque que, segundo ela, eram recorrentes em carências e desafectos. Fiquei a pensar na evidência. Esta velhaca de tão satisfeita que anda já só tem olhos para o próprio umbigo. Olha, minha querida, se o gajo da pizza te enche a mula isso não te dá o direito de desdenhares da parca dieta que me cabe. “Mas, então o teu Juvenal não…”. O meu Juvenal não é para aqui chamado… se queres mudar o rumo ao berloque só porque andas veleirinha entre pernas estás muito enganada, ou achas que a tua “coisa” é bitola para a linha do berloque!
Desatou a rir. Ainda hei-de escrever qualquer coisa sobre esta conversa, disse, lançando-me um olhar muito característico nela, terrível, a meio caminho entre a ameaça e a benevolência.
Eu, que conheço as manhas literárias de que ela é capaz, antecipei-me no atrevimento. Quem vai escrever sobre esta conversa sou eu. Bem sei que me vou arrepender, mas não resisti.

Boas bicadas

segunda-feira, maio 07, 2007

Amores quase perfeitos

“Soubesse eu amar como sabes escrever”, dizes, como se isso me servisse de grande coisa.
Soubesse eu escrever como gosto de amar e contar-te-ia histórias infindáveis, daquelas que tu detestas, sobre as mil maneiras de amar. E de como precisas de te esgotar, primeiro, para reconhecer o quanto gostas disso.
“Gosto muito de ti”, murmuras culpado. Como se só nesse momento o descobrisses e, com o acto de mo comunicar, expiasses o pecado de andar o tempo todo a negá-lo. Ou, como forma de te redimires, por seres tão levianamente narcisista, a ponto de dizeres isso, no mesmo tom com que dirias, logo a seguir, depois de me ter metido as mãos entre as pernas, “estou farto de mulheres, mas não gosto de homens”.
Sorrateiro. Vens estafado dos velhos truques, mas o ter farejado os lugares das velhas caçadas, aguça-te o instinto moribundo. Queres sexo! Com falinhas mansas enrolas-me! Queres tratar-me bem, queres-me para ti, que eu te faça vir e depois te deixe dormir. E eu, que já conheço o filme - apazigua-me entre as tuas pernas e não me faças perguntas - mais vale um pássaro na mão, aproveito o ensejo e troco a elevação da escrita pelo ritual envergonhado do amor em versão porno-decadente.
“Soubesse eu escrever como gosto de amar”, e poderia contar-te muitos outros romances, do género dos que tu detestas, mas tu dormes profundamente destilando abismos. Os amores perfeitos brilham ao sol no parapeito da janela que eu não posso abrir, para não te acordar. Se estivessem do lado de dentro, diriam, “está um dia tão bonito lá fora e nós aqui mais mortos do que vivos”...
Levanto-me e saio do quarto tentando não te acordar. Visto o fato de treino. Vou caminhar. Preciso de fazer ginástica. Estou a engordar, a perder a cintura, tenho de fazer alguma coisa, senão...
De repente o computador faz um pequeno ruído. Os miúdos deixaram-no ligado! Vou até ele. Deparo-me com os “amores perfeitos” e ponho-me a pensar na subtil profundidade que queres que eu reconheça nas tuas palavras. São belas, cheias de referências e sensibilidade, mas não conseguiram apagar o impacto da confissão inicial.
Por que razão haverias tu de “saber amar como eu sei escrever”, se sabes, muito melhor do que eu, escrever memórias tristes de putas perfeitas e amores de cama à janela aberta!
Está frio nesta casa! Afinal é demasiado tarde e já não vou caminhar. Tenho de te acordar...

quarta-feira, maio 02, 2007

Diálogos Cris(pados). No carro.

- Nem que me fizesses diabruras por debaixo das rendas.
- Pois, as tuas rendas…
- O que é que querias! Pensavas-me incondicionalmente tua? Eu disse-te que estava fugida de mim. Eu avisei, eu não te enganei.
- Pensei que gostasses de brincar com as palavras. “Fugida de mim!”, o que querias que eu entendesse com “fugida de mim”?
- Que eu não era eu. Que naquele momento não era eu.
- E agora estás a ser tu?
- Agora estou a ser eu.
(silêncio)
- Então porque aceitaste jantar comigo?
(silêncio)
- Tentei de novo a transmutação mas não consegui. Hoje estou agarrada a mim, não consigo despegar-me do eu que normalmente habito.
- Deixa-me amar esse eu.
- Não suportarias o outro eu de que gostaste.
(silêncio)
- Essa dualidade existe mesmo ou é só uma conveniência estratégica?
- Conveniência estratégica! Uma estratégia pressupõe um fim. Eu não tenho princípio nem acabo, como diria o outro.
- Quem?
(silêncio)
- Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí.
- Ah esse? Não és assim tão negra…
(risos)
- Sou mais negra do que pensas, daquelas retorcidas a rondar o macabro.
- Lá estás tu…
- É verdade, já o meu ex dizia que eu era insuportavelmente verdadeira.
- Tu és é insuportavelmente bonita.
- Já cá faltava o piropo fácil. Escusas que não há rendas para ninguém.
- Pois, é mais rendilhados…
- Se não te agrada podemos mudar de assunto.
- Não. Adoro ouvir-te, com ou sem rendas, com ou sem rendilhados.
- Ó homem! Com ou sem, assim ou assado… ninguém gosta assim tão pouco.
- Tu és demais. Estás sempre na retranca. Mas o facto é que vieste e não me interessa qual dos eus trouxeste.(pausa) Gostava de amar-te no permeio dos teus eus… sempre sonhei ter duas mulheres na cama.
(risos)
- Seria catastrófico. Os meu eus não se dão bem, são incompatíveis, existem mas não coexistem.
- E hoje estás com o eu que se recusa aceitar-me. Já sei, já disseste.
- Que recusa trair-te.
- O quê!
- Que recusa trair-te, meu querido. Que recusa trair-te.