“Os Escritos de Luna” chegaram-me pela mão de uma amiga. Este espólio é constituído por oito cadernos “Ambar” de cor preta, formato A5, e várias folhas soltas de apontamentos e rascunhos. “Oito cantos de uma vida”, como a minha amiga gosta de lhes chamar. Tudo escrito à mão. À minha amiga tinham-lhe chegado de forma dramática.
A autora dos “Escritos” sabia da sua precária existência e premeditou a sua morte em cada ponto final dos seus escritos. Nunca usou reticências. Nasceu em 1963 e faleceu de doença cancerígena em 2003. “Todos nós, pelo menos uma vez na vida, somos abandonados”, (apont. fl.42).
Não a conheci pessoalmente mas a avaliar pelo testemunho da minha amiga e pelas palavras que deixou nos “Escritos”, posso dizer que fiquei completamente apaixonada pela lucidez e coragem desta mulher. Só pensava em chegar a casa para transpor os textos para o computador e deliciar-me demoradamente a pesar as frases e as palavras. Um testemunho avassalador de amor e vida. Puro e duro.
Depois de organizar os vários cadernos e outros apontamentos da autora, consegui perceber os meandros da sua existência e penetrar nas suas emoções. Apercebi-me comovida da angústia disfarçada que se escondia por trás da letra serena e bem desenhada. Uma dor contida no correr da caneta.
Sabia de antemão que os “Escritos de Luna” eram auto-biográficos, porém estão escritos em forma de romance e narrados na terceira pessoa. A autora confunde-se com a narradora, e esta com Luna, mas, a espaços, subtrai-se desta, como se recusasse para ela o vaticínio que já tinha predestinado à personagem e que no fundo configurava a inevitabilidade do seu próprio fim, “Escrevo durante a noite para afugentar a ideia da morte”, (Escritos de Luna cad.4 pag.44).
Curiosamente, também algumas personagens que acompanham e interagem com Luna reflectem a própria autora. Dá-lhes o seu próprio corpo e veste-as com a sua alma. Em todas há um tudo dela.
Os “Escritos” só têm fim. O caderno oito é derradeiro, “Pode-se reescrever a história, mas não se pode reescrever a vida.”,(Escritos de Luna cad.8 pag.67). Todo o resto é anacrónico e sem método, escrito na urgência de verter para o papel as memórias que se esvaíam ao sabor das injecções de morfina.
Tentei organizá-los de maneira a perceber o percurso desta mulher caleidoscópio, reflexo das várias que habitam os “Escritos”. A tarefa foi difícil e, provavelmente, não corresponde exactamente ao trabalho que a minha amiga pretendia: dar-lhe uma forma coerente para que o filho da autora, quando chegar a altura certa, possa conversar com a mãe, para que ela possa amá-lo e ser amada na medida das palavras que lhe deixou. Creio que ao ter conhecimento da doença sentiu necessidade de deixar o seu testemunho de vida ao filho, “Foi para poder continuar a falar contigo meu menino lindo. Para que não te sintas só na incongruência do mundo. Para que saibas que nasceste de forma bela e que és algo realmente verdadeiro que ela deixou ao mundo.”, (Escritos de Luna cad.9 pag.67).
À filha, que nasceu morta, de aborto espontâneo, dedicou grande parte do caderno 5, num relato intenso e implacável, “Espoliada da própria alma nesse acto inútil de parir. Uma dor sem retorno, senão novamente a dor. Esvaziada como uma rês a quem se arrancou as entranhas para deitar no lixo. Uma máquina de parir avariada. Uma barriga de aluguer para coisa nenhuma. O escárnio da natureza no corpo pequenino e roxo que lhe escorria do ventre ensanguentado. Do ventre aberto e dilacerado nessa dor animalesca de parir uma negação de futuro. Parir a morte… Somos animais, ponto final. Inventámos a alma e ligámo-la a Deus porque certas dores são demasiado insuportáveis.”, (Escritos de Luna cad.5 pag.60)
Quando alinhei todas as peças do puzzle e reli os “Cadernos” não fiquei surpreendida. Já me tinha apercebido da força do “documento” enquanto lhe dava forma. Estava ali uma obra literária, cuidada no estilo e de contornos narrativos perceptíveis e bem delineados. Podíamos inteirar-nos através do percurso de Luna do panorama social e político dos anos oitenta: a ressaca ideológica da esquerda em que ela orbitava; as mulheres que já se afirmavam socialmente; o entrosamento das vagas universitária dos anos 60, 70 e 80; os missionários do teatro, meio onde ela também se movia; a resistência cultural por oposição ao liberalismo económico ditado pelos senhores do mundo, o consumismo como veículo ilusório da felicidade e da igualdade, etc., etc. Tudo isto é abordado no extremo do seu trajecto de vida...
Embora esta evocação possa parecer soturna os “Escritos” nada têm de tétrico, pesem embora as circunstâncias em que foram escritos. A escrita é pungente, marcada pela dura verdade da vida, sem disfarces, mas serena e inteligente. O discernimento é comovente.
Neste momento a minha amiga é a fiel depositária deste lancinante testemunho de vida. Aguarda que o “filho de Luna” cresça para que dele decida em consciência. Contudo, não se opôs a que eu desse conta de algumas passagens aqui no berloque. Os “Escritos de Luna” ou os “Oito Cantos de Uma Vida”. Um documento sublime que talvez chegue aos escaparates.
Boas minhocas
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