Amamos desmedidamente sob lençóis ásperos
Teresinha cresceu sozinha no pátio, entre os líquenes da fossa comum, brincando com as gordas minhocas que o montículo de estrume fornecia. Sem bonecas nem livrinhos aos quadradinhos o seu universo infantil resumia-se a olhar e escutar o mundo lá fora, para lá das grades do portão.
Tinha uns olhos grandes de ver e uma expressão permanentemente matutina, como se tivesse acabado de nascer adulta e estremunhada. Pouco falava, os olhos serviam-lhe de linguagem.
Passou o tempo e o portão do pátio abriu-se para ir à escola. Descobriu que para aprender a ler tinha que falar, um esforço sobrenatural que superou quando se apercebeu que aprendendo a ler também aprendia a escrever. Foi a grande viragem. A partir daí esparramava no papel frases atrás de frases, um rosário interior de pensamentos que nunca tinha ousado dizer.
Escreveu histórias sobre as pessoas que habitavam do lado de lá do portão, historias imaginadas para lá das grades, alheando-se assim da miséria onde fora concebida. Inventou romances e alimentou-os entre linhas e linhas de amor, forjando cenários atrevidos, quiçá inspirada na degradação que reinava lá por casa.
A mãe mete-se nos copos, uma desavergonhada e os outros irmãos estão lá para Coimbra, numa casa de reinserção social, do pai não se sabe, temos que fazer alguma coisa, ouviu Teresinha dizer ao professor de Português, enquanto esperava cá fora, no corredor. O director queria falar com ela por causa de uma composição que tinha feito. Estava assustada, o que é que teria escrito de mal?
"Só quero amar. E tenho tudo para o fazer, tenho uma caneta, um papel e muita vontade. A mãe diz que o amor não traz dinheiro, só desgosto. Eu não concordo, está bem que o dinheiro é preciso, mas amar deve ser a melhor riqueza que podemos alcançar e não entendo como escrever pode trazer desgosto. O meu maior desgosto seria não ter uma caneta e um papel e esta grande vontade de escrever.[...]"
O director tirou os óculos, olhou a miúda enternecido. Escreves muito bem, disse-lhe, mas olha que há outras formas de amar para além de escrever. Ela, moita-carrasco, mas arregalou os olhos grandes de ver, agora, talvez, enormes de amar, como que indagando que outros métodos eram esses.
Um dia bateu com o portão definitivamente, virou as costas ao pátio, sem saudade. Os livros que o director lhe emprestara ao longo dos últimos 4 anos tinham-lhe ensinado muita coisa. Julgou-se preparada para amar. E, quem sabe, ser amada.
7 comentários:
Delicioso, é pena que não possas dizer mais... quem sabe se alguém identifica este pátio mesmo com tão poucas referências
Alô Teresinha, aquele abraço
"Aquele Abraço", de Elis Regina, fabulosa. Venha música, aí vai letra:
"O Rio de Janeiro continua lindo
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, fevereiro e março
Alô, alô, Realengo - aquele abraço!
Alô, torcida do Flamengo - aquele abraço!
Chacrinha continua balançando a pança
E buzinando a moça e comandando a massa
E continua dando as ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha - velho guerreiro
Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha - velho palhaço
Alô, alô, Terezinha, aquele abraço!
Alô, moça da favela, aquele abraço!
Todo mundo da Portela - aquele abraço!
Todo mês de fevereiro - aquele passo!
Alô, Banda de Ipanema - aquele abraço!
Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço
A Baía já me deu régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu - aquele abraço!
Pra você que me esqueceu - aquele abraço!
Alô Rio de Janeiro - aquele abraço!
Todo o povo Brasileiro - aquele abraço!"
e, já agora:
Alô, alô, "Mulherio" - aquele abraço!
Todos temos pátios onde vamos encerrando as nossas vontades e os nossos desejos, ou por cobardia ou por incapacidade ou porque simplesmente não queremos libertar-nos.
Fiquei emocionada com a vossa dedicatória "mulheres de Canas, que também poderiam ser de Atenas".
Até já
O comentário de trás é meu
A.V.
Estava a ver que não...poupadinha :)
...aquele abraço...
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