Nunca uma coisa daquelas lhe tinha acontecido. Logo pela manhã, a fiel carripana que o levava habitualmente à comarca de Mangualde recusou-se a cumprir o percurso. Dois inesperados solavancos silenciaram o motor fumegante e prostraram a resistente companheira ali para os lados da Barragem Velha, na Urgeiriça. A carripana cedeu ao calor que se fazia sentir.
Estávamos no Verão de 1982 e os telemóveis ainda demorariam alguns anos a obviar estes problemas, pelo que, o Doutor, cofiou demoradamente a barba e foi avaliar o estrago, mais por descargo de consciência do que por capacidade técnica na resolução do incidente.
- Logo hoje que tenho o processo de pantanas e o julgamento marcado para as 14 horas é que me havia de acontecer isto! Ainda por cima com as férias judiciais à porta – resmungou.
Homem poupado, nada dado a extravagâncias, recusou a ideia de ir de táxi. Reformulou as possibilidades e verificou que com alguma agilidade poderia apanhar o comboio do meio-dia, o que lhe dava tempo suficiente para comer alguma coisita e apresentar-se no tribunal. Tinha era de ir para casa rever o processo.
Se assim o pensou, melhor o fez. Voltou para casa a pé, telefonou ao “Rato” para que fosse identificar o mal da carrinha e dedicou parte da manhã ao processo, um complexo diferendo a propósito de direitos de acesso a um lameiro.
Por volta das 11 horas pegou na pasta e rumou à estação. Estranhou a calma que reinava por ali. As bilheteiras estavam fechadas e não vislumbrou qualquer movimentação que indiciasse a passagem do comboio. Desconfiado, dirigiu-se ao gabinete do Chefe da Estação:
- Então Doutor, o que é que o traz por cá? – cumprimentou-o amavelmente o Chefe.
- Venho apanhar o comboio do meio-dia para Mangualde.
- Ó Doutor então não sabe que os rápidos já não param aqui!
- O rápido já não para em Canas. Ó que carago! Isto é uma cambada de fascistas. Os reaccionários estão a tomar conta disto e este povo atrasado nem dá conta que lhe estão a comer os ossos…
Serenou após deixar sair um chorrilho de imprecações, às quais, o pobre do Chefe da Estação, impotente, dava a sua anuência.
- E o regional? A que horas passa?
- Às 19 horas.
- Olhem que uma destas…
Subiu a penosa Rua da Estação inconformado. Enquanto caminhava ia pensando num estratagema que justificasse a sua ausência no julgamento. Era preciso informar o Dr. Juiz, para que adiasse o julgamento, avisar o cliente, e, acima de tudo, providenciar um atestado médico para ficar acima de qualquer reparo.
Assim como assim, já não ia a Mangualde, portanto, ia comer calmamente e fazer os telefonemas necessários.
Almoçou e de seguida dirigiu-se ao Café Rossio onde tomou a bica do costume. Desancou a CP, os fascistas do governo, a Câmara de Nelas e incitou os clientes do café à revolta. Isto assim não podia continuar…
Por volta das 14 horas foi ao Posto Clínico falar com o médico para lhe apresentar a sua “enfermidade”. Ia na certeza do clínico atender as suas razões, até porque a situação o deixara num tal estado de nervos que por certo lhe mereceria o diagnóstico solicitado. Mas, qual não foi o seu espanto quando foi informado que o médico agora só vinha às segundas e o mais provável era o Posto Médico encerrar de vez.
-Isto é uma conspiração! É o que vos digo, isto é uma conspiração dos inimigos de Canas. Qualquer dia até para morrermos temos que ir a Nelas…
Tudo se lhe afigurava uma maquinação, uma trama conspiratória, um castigo político pelo atrevimento de Canas querer ser concelho. Vociferava sozinho contra o estado a que as coisas chegaram. Era preciso fazer alguma coisa. Este pensamento não lhe saía da cabeça.
Voltou ao café e uma vez mais deu conta aos presentes do que estava a acontecer.
- Vocês estão todos cegos? Não vêm que nos estão a roubar descaradamente! É preciso fazer alguma coisa.
Acalmou para repensar a sua situação pessoal. Já tinha feito os telefonemas, o julgamento tinha sido adiado, tinha cinco dias para apresentar o atestado, portanto, só precisava de ir a Mangualde buscar alguns elementos que foram anexados ao processo à última da hora e dos quais não tinha conhecimento. O melhor era enviar um ofício urgente à secretaria do tribunal para que lhe enviassem fotocópias dos documentos, não fossem as más-línguas estranhar a presença do suposto doente.
Olhou para o relógio. 17 horas em ponto. Rabiscou um texto rápido e dirigiu-se aos Correios para expedir a correspondência com carácter urgente. A funcionária, simpática, selou o envelope mas informou-o que, mesmo urgente, só seguiria amanhã, pois a correspondência do dia já tinha sido recolhida às 16H30, conforme instruções superiores.
Foi a gota de água. Mais pelas situações desconcertantes de que foi alvo do que pelo sol que apanhou no vaivém dos desfazeres, um tremor de pernas fê-lo sucumbir ligeiramente, a cor do rosto passou de vermelho-raiva a amarelo-desmaio e só uns sais miraculosos providenciados pelo Jorge da farmácia lhe devolveram alguma correcção.
Recuperou ao fim de uma boa meia-hora. Foi para casa e fez alguns contactos. Era preciso fazer alguma coisa. Nessa noite reuniu no antigo Zé Pataco um grupo de canenses que, solidários com as adversidades do Doutor, delinearam os traços gerais das acções subversivas que teriam lugar no dia 2 de Agosto de 1982 e que extrapolaram para a comunidade os inconvenientes de um dia aziago na vida de um causídico.
Actualmente comemora-se a data recordando as motivações concelhias que supostamente lhe estiveram na origem. O que pouca gente sabe é que tudo começou com um problema de aquecimento de uma velha e esbaforida carripana e das desventuras do seu proprietário.
Estávamos no Verão de 1982 e os telemóveis ainda demorariam alguns anos a obviar estes problemas, pelo que, o Doutor, cofiou demoradamente a barba e foi avaliar o estrago, mais por descargo de consciência do que por capacidade técnica na resolução do incidente.
- Logo hoje que tenho o processo de pantanas e o julgamento marcado para as 14 horas é que me havia de acontecer isto! Ainda por cima com as férias judiciais à porta – resmungou.
Homem poupado, nada dado a extravagâncias, recusou a ideia de ir de táxi. Reformulou as possibilidades e verificou que com alguma agilidade poderia apanhar o comboio do meio-dia, o que lhe dava tempo suficiente para comer alguma coisita e apresentar-se no tribunal. Tinha era de ir para casa rever o processo.
Se assim o pensou, melhor o fez. Voltou para casa a pé, telefonou ao “Rato” para que fosse identificar o mal da carrinha e dedicou parte da manhã ao processo, um complexo diferendo a propósito de direitos de acesso a um lameiro.
Por volta das 11 horas pegou na pasta e rumou à estação. Estranhou a calma que reinava por ali. As bilheteiras estavam fechadas e não vislumbrou qualquer movimentação que indiciasse a passagem do comboio. Desconfiado, dirigiu-se ao gabinete do Chefe da Estação:
- Então Doutor, o que é que o traz por cá? – cumprimentou-o amavelmente o Chefe.
- Venho apanhar o comboio do meio-dia para Mangualde.
- Ó Doutor então não sabe que os rápidos já não param aqui!
- O rápido já não para em Canas. Ó que carago! Isto é uma cambada de fascistas. Os reaccionários estão a tomar conta disto e este povo atrasado nem dá conta que lhe estão a comer os ossos…
Serenou após deixar sair um chorrilho de imprecações, às quais, o pobre do Chefe da Estação, impotente, dava a sua anuência.
- E o regional? A que horas passa?
- Às 19 horas.
- Olhem que uma destas…
Subiu a penosa Rua da Estação inconformado. Enquanto caminhava ia pensando num estratagema que justificasse a sua ausência no julgamento. Era preciso informar o Dr. Juiz, para que adiasse o julgamento, avisar o cliente, e, acima de tudo, providenciar um atestado médico para ficar acima de qualquer reparo.
Assim como assim, já não ia a Mangualde, portanto, ia comer calmamente e fazer os telefonemas necessários.
Almoçou e de seguida dirigiu-se ao Café Rossio onde tomou a bica do costume. Desancou a CP, os fascistas do governo, a Câmara de Nelas e incitou os clientes do café à revolta. Isto assim não podia continuar…
Por volta das 14 horas foi ao Posto Clínico falar com o médico para lhe apresentar a sua “enfermidade”. Ia na certeza do clínico atender as suas razões, até porque a situação o deixara num tal estado de nervos que por certo lhe mereceria o diagnóstico solicitado. Mas, qual não foi o seu espanto quando foi informado que o médico agora só vinha às segundas e o mais provável era o Posto Médico encerrar de vez.
-Isto é uma conspiração! É o que vos digo, isto é uma conspiração dos inimigos de Canas. Qualquer dia até para morrermos temos que ir a Nelas…
Tudo se lhe afigurava uma maquinação, uma trama conspiratória, um castigo político pelo atrevimento de Canas querer ser concelho. Vociferava sozinho contra o estado a que as coisas chegaram. Era preciso fazer alguma coisa. Este pensamento não lhe saía da cabeça.
Voltou ao café e uma vez mais deu conta aos presentes do que estava a acontecer.
- Vocês estão todos cegos? Não vêm que nos estão a roubar descaradamente! É preciso fazer alguma coisa.
Acalmou para repensar a sua situação pessoal. Já tinha feito os telefonemas, o julgamento tinha sido adiado, tinha cinco dias para apresentar o atestado, portanto, só precisava de ir a Mangualde buscar alguns elementos que foram anexados ao processo à última da hora e dos quais não tinha conhecimento. O melhor era enviar um ofício urgente à secretaria do tribunal para que lhe enviassem fotocópias dos documentos, não fossem as más-línguas estranhar a presença do suposto doente.
Olhou para o relógio. 17 horas em ponto. Rabiscou um texto rápido e dirigiu-se aos Correios para expedir a correspondência com carácter urgente. A funcionária, simpática, selou o envelope mas informou-o que, mesmo urgente, só seguiria amanhã, pois a correspondência do dia já tinha sido recolhida às 16H30, conforme instruções superiores.
Foi a gota de água. Mais pelas situações desconcertantes de que foi alvo do que pelo sol que apanhou no vaivém dos desfazeres, um tremor de pernas fê-lo sucumbir ligeiramente, a cor do rosto passou de vermelho-raiva a amarelo-desmaio e só uns sais miraculosos providenciados pelo Jorge da farmácia lhe devolveram alguma correcção.
Recuperou ao fim de uma boa meia-hora. Foi para casa e fez alguns contactos. Era preciso fazer alguma coisa. Nessa noite reuniu no antigo Zé Pataco um grupo de canenses que, solidários com as adversidades do Doutor, delinearam os traços gerais das acções subversivas que teriam lugar no dia 2 de Agosto de 1982 e que extrapolaram para a comunidade os inconvenientes de um dia aziago na vida de um causídico.
Actualmente comemora-se a data recordando as motivações concelhias que supostamente lhe estiveram na origem. O que pouca gente sabe é que tudo começou com um problema de aquecimento de uma velha e esbaforida carripana e das desventuras do seu proprietário.
8 comentários:
Ehehehe... quem diria!
Mais uma crónica fantástica. Grande Riça.
Há grandes revoluções que começam com problemas mais comezinhos.
:)
Alô alô, eu nem em 82 nem em 07. É o chamamento das férias. Então ninguém conta novidades... o que é que se passou para além das sardinhas e da vinhaça? Sempre houve inauguração do monumento aos mártires! E a carripana já anda :)
Boas férias para as meninas e para os meninos
Mais uma prova viva de que as grandes lutas não se devem a servir os interesses do povo, mas sim os interesses de quem inicialmente as fomentou!!!
Mais uma mancha numa nobre luta!!!
Cumprimentos.
A mancha é mesmo grande!!!!!
DELIVERAÇÃO, lol. Que comédia, só mesmo nesta terra!!!
André Blog:
Devido a uma pequena avaria o blog:
[[ http://andreetal.blogs.sapo.pt/ ]]
já não é gerido por nimguém.
A continuação deste tem lugar em:
http://andre_blog.blogs.sapo.pt/
Abraço e Obrigado
assim está melhor!...
lol
...e esses post's?
Ainda estão de férias??
Enviar um comentário