Desta vez tens um programa especial.
Temo os teus programas. Ao princípio ainda ficava entusiasmada com a ideia. Pensava ingenuamente que tinhas feito aquele frango de caril picante e mo desses a provar no conforto da tua sala, convenientemente preparada para uma longa sessão a dois. Isto, quando habitávamos sozinhos a tua sala.
Gosto da tua sala. Não me canso de olhar as lombadas volumosas dos livros abandonados à desordem do teu método de trabalho. Mas do que eu gosto mais é da biblioteca. Vagueio por entre as estantes em carvalho escuro, repletas de preciosidades literárias, herdadas da tua mãe e acumuladas por anos e anos de religiosa devoção à leitura. Por vezes gracejavas da tua mãe, dizias que tinha gasto a fortuna do senhor coronel em livros. O senhor coronel que sustentava a amante insaciável com literatura. Sempre mais e mais livros, a medida de um amor proibido. Gosto de imaginar as histórias que esta sala enorme encerra. Em frente à janela que dá para o terraço ainda conservas a poltrona onde a tua mãe desfolhava as incontáveis páginas que o coronel providenciava; na mesa de apoio um livro entreaberto resiste à preguiça da leitura; ao fundo, abandonado à tua letargia, o piano geme desafinado, despertando da sua longa hibernação quando lhe acaricio as teclas; nas paredes, os teus antepassados reprovam o atrevimento da intrusa. Saio para o terraço.
Chamas-me, longínquo. A casa é enorme, daquelas casas aristocratas onde quatro gerações podiam coabitar harmoniosamente. Já foi majestosa, agora deteriora-se, confirmando a decadência das grandes famílias. Ouço vozes femininas. São as universitárias a quem alugas quartos e sei lá mais o quê… tinha que ser, disseste-me, a casa precisa de obras. Não denotam qualquer admiração por me verem ao fundo do corredor, sinal de que é comum a presença de estranhos por aqui. Nada que eu não soubesse.
Estou no terraço, gritei. Contemplava a vegetação que sufoca o antigo lago do jardim interior. Uma corda arqueava sob o peso da roupa das universitárias. Numa das extremidades ombreavam lado a lado as cuecas dele com as das meninas… mas por que raio haviam de estar presas na mesma mola?
Libertei-me destes melindres, respirei fundo e voltei à sala. Voltaste do banho que eu recusei. Estava com o período e não me apetecia partilhar amores de banheira nestas condições. Disse-to e tu sorriste compreensivo. Fosse noutros tempos e insistirias na barrela. Tomaríamos um banho dionisíaco e cantarias hinos às bacantes chafurdando alegremente na água tingida de mim. Agora! Agora tens um programa especial…
Vamos ver “A Gaivota” do Tchekov, disseste de rompante, tentando surpreender-me.
És sempre tão previsível quando me queres agradar. Há tempos disse-te que o meu actor preferido era o Luís Miguel Cintra. Não te esqueceste…
Regresso a Canas. O comboio desliza veloz. Não consigo concentrar-me no livro que me emprestaste, aliás que me aconselhaste. Olho a paisagem em fuga e reparo que a única imagem fixa que retenho é a da catenária que acompanha toda a extensão da linha, um imenso estendal, ridículo, repleto de cuequinhas de mão dada, unidas pela mola do meu descontentamento.
Boas minhocas
Temo os teus programas. Ao princípio ainda ficava entusiasmada com a ideia. Pensava ingenuamente que tinhas feito aquele frango de caril picante e mo desses a provar no conforto da tua sala, convenientemente preparada para uma longa sessão a dois. Isto, quando habitávamos sozinhos a tua sala.
Gosto da tua sala. Não me canso de olhar as lombadas volumosas dos livros abandonados à desordem do teu método de trabalho. Mas do que eu gosto mais é da biblioteca. Vagueio por entre as estantes em carvalho escuro, repletas de preciosidades literárias, herdadas da tua mãe e acumuladas por anos e anos de religiosa devoção à leitura. Por vezes gracejavas da tua mãe, dizias que tinha gasto a fortuna do senhor coronel em livros. O senhor coronel que sustentava a amante insaciável com literatura. Sempre mais e mais livros, a medida de um amor proibido. Gosto de imaginar as histórias que esta sala enorme encerra. Em frente à janela que dá para o terraço ainda conservas a poltrona onde a tua mãe desfolhava as incontáveis páginas que o coronel providenciava; na mesa de apoio um livro entreaberto resiste à preguiça da leitura; ao fundo, abandonado à tua letargia, o piano geme desafinado, despertando da sua longa hibernação quando lhe acaricio as teclas; nas paredes, os teus antepassados reprovam o atrevimento da intrusa. Saio para o terraço.
Chamas-me, longínquo. A casa é enorme, daquelas casas aristocratas onde quatro gerações podiam coabitar harmoniosamente. Já foi majestosa, agora deteriora-se, confirmando a decadência das grandes famílias. Ouço vozes femininas. São as universitárias a quem alugas quartos e sei lá mais o quê… tinha que ser, disseste-me, a casa precisa de obras. Não denotam qualquer admiração por me verem ao fundo do corredor, sinal de que é comum a presença de estranhos por aqui. Nada que eu não soubesse.
Estou no terraço, gritei. Contemplava a vegetação que sufoca o antigo lago do jardim interior. Uma corda arqueava sob o peso da roupa das universitárias. Numa das extremidades ombreavam lado a lado as cuecas dele com as das meninas… mas por que raio haviam de estar presas na mesma mola?
Libertei-me destes melindres, respirei fundo e voltei à sala. Voltaste do banho que eu recusei. Estava com o período e não me apetecia partilhar amores de banheira nestas condições. Disse-to e tu sorriste compreensivo. Fosse noutros tempos e insistirias na barrela. Tomaríamos um banho dionisíaco e cantarias hinos às bacantes chafurdando alegremente na água tingida de mim. Agora! Agora tens um programa especial…
Vamos ver “A Gaivota” do Tchekov, disseste de rompante, tentando surpreender-me.
És sempre tão previsível quando me queres agradar. Há tempos disse-te que o meu actor preferido era o Luís Miguel Cintra. Não te esqueceste…
Regresso a Canas. O comboio desliza veloz. Não consigo concentrar-me no livro que me emprestaste, aliás que me aconselhaste. Olho a paisagem em fuga e reparo que a única imagem fixa que retenho é a da catenária que acompanha toda a extensão da linha, um imenso estendal, ridículo, repleto de cuequinhas de mão dada, unidas pela mola do meu descontentamento.
Boas minhocas
2 comentários:
... mais uma vez gostei.
Mas, porque não tirou a mola do estendal? A tal, que unia as peças de roupa?
Isso ocupava mais um parágrafo e seria inconsequente para o rumo dos acontecimentos... e do meu descontentamento.
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