quinta-feira, janeiro 25, 2007

O despique

Sobressalta-me a ideia do Carnaval. Desde pequena nutro um desvario emocional por esta época do ano que conflui inevitavelmente naqueles três dias alucinantes.
A minha mãe impunha-me condições para marchar no corso do Rossio. Os tempos eram de encarniçada competição e bastas vezes a alegria transformava-se em violência. Assim, no despique, tinha que prometer que a minha participação se limitaria às orlas da confusão, onde o olhar protector da minha mãe lograsse alcançar o suposto comedimento. Que inveja tinha do meu irmão, isento das grilhetas do bom senso que me eram impostas a mim.
Ainda assim, e salvaguardada pela desculpa dos empurrões, mal a cambada do Paço arremetia ao tradicional encontro, atirava-me de alma e coração para o meio da contenda gritando pelo meu Rossio até que a voz se sumisse. Parecia uma boneca de trapos dentro de uma máquina de lavar roupa a 80º e em plena centrifugação. Ali é que a mãe não me ia buscar. Mas por azar, lá vinha o meu irmão armado do seu poder paternal pôr ordem na desmiolada. Lá voltava à segurança da orla, contrariada. Recuperado o fôlego, aproveitava uma desatenção da mãe e ala que se faz tarde, irrompia aos saltos por entre os matulões do Paço que, dada a minha tenra idade, subestimavam a minha garra e abriam alas à minha intrepidez.
Extenuada mas convicta que, sem a minha presença o Rossio não lograria vencer, voltava para casa de lagrimazita no olho, a pensar com os meus botões porque é que o Carnaval passava tão depressa.
Precisava de uma mês para recuperar da saudade que se me instalava na alma. E não eram raras as vezes que, pela calada do dia, eu própria ia fazer o enterro do meu Carnaval. Qualquer resquício de um carro alegórico servia para cumprir as exéquias. Ali ficava acariciando as flores que a chuva já desbotara, adorando os interstícios de arame, ferro e madeira que tinham na sua glória efémera encantado os meus olhos agora tristes e pesarosos. Bem sabia que para o ano havia mais, mas o tempo de uma criança esgota-se no momento presente. Foi assim durante muitos anos.
Agora já não salto nem grito no despique, mas a comoção e a emoção ainda vivem dentro de mim. De tal forma que invariavelmente me humedecem os olhos quando os dois bairros se cruzam, como se naquele momento passasse por mim toda a minha vida e todas as recordações projectassem a história da minha própria existência. É assim o carnaval de Canas.

Boas minhocas

8 comentários:

Cingab disse...

Você "puxa" ao sentimento!... e ainda bem!...

Riça disse...

Cristalinda
Sempre foste uma chorona

ibotter disse...

+um belo "post"
a choradeira é na 4º feira de cinzas!

Achadiça disse...

A choradeira de Quarta feira é para a malta do Paço. No Rossio começa logo na terça à noite, a seguir ao despique.

Cingab disse...

Isso quando há despique!

Achadiça disse...

Pois, também é verdade. Já lá estivemos algumas vezes sózinhos, ou pelo menos parecia.

PortugaSuave disse...

O despique é sem dúvida o ponto mais alto, mas a segunda-feira das velhas está a renascer... começa a ser uma espécie de preparação para o confronto final.
Cumprimentos e continue a deliciar-nos

Cingab disse...

E também já houve vezes que não estiveram lá!