sexta-feira, março 30, 2007

1º Aniversário. A história de um berloque

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O Mulherio faz hoje um ano de vida. Tudo começou quando o meu Juvenal, entusiasmado com a blogosfera canense e pressionado por mim, conseguiu vislumbrar alguma vantagem para benefício próprio em instalar a NET cá em casa. Somítico como ele é, não pensem que foi de ânimo leve. Só com o ultimato de que lhe cortava a SporTV é que o consegui convencer.
Nos primeiros tempos ninguém o despegava da secretária. Andava tão encantado com o novo brinquedo que ia para a cama às tantas da madrugada, ainda por cima, para meu desconforto, extenuado de tanto bicar no teclado.
Claro que esta situação agastava o dia a dia da nossa relação, pois de que é que me servia um homem agarrado permanentemente ao computador! Isto para não falar do mau estar que se me instalara na alma. Trocada por uma maquineta e sei lá por quem mais – rancorava eu na solidão do quarto. Sim comecei a ficar ciumenta, pois bem sabia que não era a máquina que o prendia mas sim quem do lado de lá mo estava a prender.
A minha mãe sempre me disse que aos homens não se pode dar um palmo de terreno, que é como quem diz, um palmo de mulher alheia. Têm uma tendência inata para desbravar, dizia ela, enquanto me aconselhava terapias sexuais que a experiência lhe tinha ensinado e que surtiram pleno efeito com o meu pai, pese embora a hérnia discal que o atormentava desde os tempos da Guiné.
Foi com esta convicção que me comecei a sentar amiúde ao lado do meu Juvenal enquanto ele lá escrevinhava os seus comentários nos berloques. Para minha surpresa constatei que por aquelas bandas mulheres vestidas nem vê-las. Muito homem, ou pelo menos assim parecia pela forma como escreviam. Canas para aqui, Canas para ali, Zé Corrécio para além… enfim, muita política, mas ditada no masculino. Ainda me lembro dos saudosos Ironia, Pai Mouro, Granito, Mineiro, Bancadas (por onde andarão estas almas) e tantos outros que por lá masturbavam o intelecto. O meu Juvenal pode ter muitos defeitos mas posso jurar que não é de afinidades suspeitas com homens. Fiquei mais descansada. Era só mais um a quem tinha dado a doença do Concelho.
Como sou irrequieta das duas uma, ou o deixava em paz na sua saga blogueira ou alinhava no jogo e aprendia as artes de navegação requeridas para poder gozar daquele prazer virtual. Se o pensei, melhor o fiz. Com a ajuda do meu galo registei-me e comecei a debicar provocações e outros disparates por todos os berloque canenses que me tinham sido dados conhecer. Nasceu uma estrela, lol. A Achadiça.
Já não me lembro bem, mas parece que ao registar-me ficou desde logo criado o espaço que mais tarde ganharia os contornos do que hoje é o Mulherio.
O facto é que com o andar da carruagem, à medida que o meu entusiasmo pelos berloques crescia, o do meu Juvenal ia-se desvanecendo. Como nós mulheres temos o dom da ubiquidade viu-se assim concertada a nossa vida amorosa sem mais atropelos dignos de registo. Pode assim concluir-se com alguma maldadezinha que o Mulherio nasceu da minha insatisfação afectiva…
Aquando da primeira bicada no Mulherio, a 30 de Março de 2006, e uma vez que a presença feminina era quase nula, a minha ideia era cativar as mulheres canenses para este género de praça pública, onde pudéssemos, também nós, dizer de nossa justiça, falar das nossas preocupações, das nossas vivências… provocar, brincar, gozar, rir. Em suma, abordar tudo o que nos apetecesse. Já tinha falado do assunto à Riça e à Cris que alinharam na ideia e desde logo se disponibilizaram para contribuir, embora não muito convictas de que o projecto resultaria, especialmente porque me precipitei na estética do berloque, atribuindo-lhe referências que à partida poderiam condicionar alguns espíritos femininos mais sensíveis a estas coisas de galináceos. Mas já não dava para voltar atrás. Ficámos por iniciativa minha conotadas às galinhas e coladas ao galinheiro, mesmo depois de reformulado o design do berloque. Mas disto já dei conta em texto anterior, numa resposta a um mail de uma galinha nossa conterrânea mais indignada (ou brincalhona).
Depois de uma conversa com o meu Juvenal, rogando-lhe pela alma da mãezinha (é remédio santo) que mantivesse absoluto sigilo sobre a identidade das galinhas e se abstivesse de comentários comprometedores, arrancámos com o estilo ligeiro que inicialmente caracterizava as nossas bicadas.
Cedo nos apercebemos que os nossos receios eram fundados e que efectivamente a ideia inicial não vingaria. Tal facto não nos dissuadiu, até porque a Cris e a Riça começaram a delinear um trajecto bastante mais interessante que viria a consolidar a linha actual do Mulherio. Libertas do folclore genital inicial parece termos encontrado o rumo ideal para que este projecto ganhe consistência.
Hoje, passado um ano, as mulheres de Canas, com uma ou outra excepção, não aderiram à berlocosfera e muito menos visitam ou comentam o Mulherio. Creio, contudo, termos ao longo deste ano deixado marcas indeléveis no panorama da berlocosfera canense. Não sei o que o futuro nos reserva, mas posso assegurar-vos que nos divertimos e tentámos divertir todos aqueles que nos deram a graça da sua visita durante este nosso primeiro aninho. Obrigada a todos e a todas que nos acompanham. Boas bicadas, muitas minhocas e bons repenicos.

A presidente Achadiça, Galinha Riça e Cristalinda

Provocação 1

O prazer de uma mulher inteligente é fazer de idiota perante um idiota que faz de inteligente.

quarta-feira, março 28, 2007

O dia A

Aproxima-se o dia A

Será o dia da Amizade
Será o dia do Atrasado
Será o dia do Amor
Será o dia do Anormal
Será o dia da Angústia
Será o dia do Alcoólico
Será o dia da Árvore
Será o dia da Afeição
Será o dia da Afecto
Será o dia da Arte
Do Alimento
Do Ácaro
Da Alface
Da Amiba

Não!

é o dia de Aniversário do Mulherio

no dia 30 de Março o Mulherio faz um ano
para breve toda a história deste berloque
contada na primeira pessoa
finalmente a verdade dos factos
revelações fantásticas que o deixarão surpreendido
não perca a queda de um mito
um depoimento assombroso
um testemunho arrepiante
inédito na berlocosfera

terça-feira, março 27, 2007

Alfa Pendular. Amores-perfeitos

20 anos de estarmos juntos
esta tarde se hão cumprido
para ti flores , perfumes
para mim, alguns livros
(...)
quis compor, para ti, uma canção
para cantar devagarinho
como o sono de meninos
e, e já vês, apenas palavras
sobre notas me hão saído
que tal e qual tu e eu
nem se importam, nem se estorvam
suportam-se amistosas
mas não são uma canção
Que gelada está esta casa!
(...)

Patxi Andion (adapt.)





Foi assim, noites dentro: o som roufenho do antigo gira-discos debitava langores bem mais profundos que o sono dos amantes. Langores oceânicos, como diria Brell.

Já desisti de amores perfeitos, à excepção das flores de mesmo nome que só não curam os males que lhe estão na designação - os de amor.
Os atenienses usavam uma infusão de amores-perfeitos como calmante e eu, crente em mezinhas, usei-os por breve momento como extensão de mim própria no parapeito da janela do teu quarto. Talvez para que te aplacassem a incerteza de estares vivo, a urgente necessidade de constatares a existência do teu corpo no corpo dos outros. Fui eu que tas ofereci. Lembras-te? Não, já não te lembras que fui eu que te ofereci os amores-perfeitos.
Quando passo na tua rua suspendo o olhar por sobre os pináculos oitocentistas que arrematam a fachada apalaçada do n.º 42. Tenho ânsias de deixar ir o olhar mais além. Sei que basta desfocar o olhar desse plano para entrever ao fundo a janela do teu quarto. A janela onde deixei uma extensão de mim, o quarto onde trocámos prendas, o quarto onde me desembrulhei premente, mesmo sabendo quão éramos imperfeitos.
Para mim um livro, envergonhado. Notei na tua exagerada explicação o débito da oferta. Ou talvez fosse o título que te desconfortasse. Que ironia da tua parte ofereceres-me “Memórias das Minhas Putas Tristes”! Está bem, tens o benefício da dúvida. Fui eu que te fiz a apologia do Gabriel Garcia Márquez e ainda me sinto suficientemente menina para te agradar disfarçada de virgem. Não percebeste o sarcasmo nem podias perceber, pois, ao contrário de ti, eu já tinha lido o livro - antes me amasses em vigília, tudo não passaria de um sonho bom - pensei.
Há muito que a janela do teu quarto não se abre. O nosso amor já não mora ali. Com alguma imaginação entrevejo por detrás da vidraça uma adolescente virgem com flores a despontar do farto penteado. Ia jurar que eram amores-perfeitos, mas não, são saudades. São só saudades.

O gira-discos calou langores. Amanhecia. Ela desabraçou-se dele. Abriu a janela do quarto de par em par e apoiou-se no parapeito. Os amores-perfeitos na sua perfeição pareciam escarnecer dos amantes. Apeteceu-lhe amarfanhá-los. Uma sensação glacial percorreu-lhe todo o corpo. Fechou repentinamente a janela e correu para o conforto da cama. Que gelada está esta casa.

sexta-feira, março 23, 2007

Crónicas da Galinha Riça - A Linhagem

A linhagem está em perigo. Uma das galinhas-mor que, contrariando tendências, usurpa de poleiro considerável, foi, alegadamente, alvo de uma bicada insidiosa por parte de um correligionário atrevido. No calor da disputa pelo poleiro, à galinha Maria José de nada lhe valeu o apelido Pinto. O agressor não se deixou comover por referências infantis e arrancou-lhe umas quantas penas, tal foi a violência do confronto. E logo das mais lustrosas. As da dignidade.
Parece ter havido tamanha escaramuça naquele galinheiro que muitos dos galináceos residentes, independentemente dos privilégios que dispõem, ameaçam abandonar o prostíbulo. Embora poucos, ou talvez por isso, demonstram um forte sentido de competição por posições altaneiras na capoeira, até agora liderada por um galo de fraca competência, facto que abriu “portas” a outros voos rapineiros.
Esta herança competitiva ficou-lhes do nacionalismo expansionista aquando da domesticação do território, bandeira de que ainda hoje se orgulham e da qual julgam ser os verdadeiros herdeiros. Saudosos de questiúnculas monárquicas a propósito de direitos sucessórios ao trono, bastou o galo Portas, que alguns apelidam de “raposa”, voltar a abanar a cauda e desatou tudo a espavonear-se desenfreadamente, reformulando posições e alianças internas no intuito de melhor se servirem da gamela.
Veio em sua defesa, o suposto agressor, declarar que tudo não passou de uma questão de colorido. As suas penas não eram da mesma cor que as da ofendida e daí a razão da escaramuça - se eu não tivesse estas penas nada disto tinha acontecido – declarou, expondo o seu penar. Logo se gerou uma confusão de argumentos e insinuações que descambaram numa trapalhada com contornos racistas.
A linhagem desta família assegura aos seus membros um colorido generoso e as múltiplas colorações que detêm são comummente objecto de disputas preferenciais. Ou não fosse este galinheiro de direita, reduto de algumas tradições aristocratas pouco recomendáveis. Ora, segundo a linha que eles próprios advogam, as variantes cromáticas podem perfeitamente favorecer a natureza de determinado exemplar, em detrimento de outros cuja penugem se evidencie menos brilhante. Então se for monocromática e em tons pouco comuns ao género, o exemplar certamente não corresponde à linha genética desta família, circunstância que por certo pesou no desaguisado.
O que não entendo é a presença permitida daquele exemplar duvidoso no seio daquela família. Então tantos anos de afinação genealógica de tão dignos membros não foram suficientes para acautelar misturas inconvenientes? Andou o Mouzinho de Albuquerque na sua campanha por terras de África, a apurar a espécie livrando-os de gungunhanas e outros bijagós, para agora serem aviltados por infiltrações de elementos de ascendência suspeita e outros que, embora de casta aceitável, revelam comportamentos injustificáveis. Ele é o raposa Portas, habilidoso palaciano; ele é um tal galaró Monteiro, doninha destemperada; e agora, para cúmulo, um servo, aio da raposa, acaba por comprometer seriamente a linhagem familiar e corromper irreversivelmente a estirpe. Hilariante.
Quanto a este elemento destabilizador parece que houve negligência grosseira aquando da apreciação do seu processo de admissão. Foi-lhe concedido o benefício da dúvida por ter alegado que um seu antepassado pertenceu ao bando de saqueadores liderado por Viriato, estatuto que, após o Estado Novo ter reescrito a história e atribuído a Viriato honras de general, lhe conferiu de imediato acesso a posição privilegiada. Tal suposição carece de confirmação, mas desde já indicia falhas graves de recrutamento que, a bem do grupo familiar, convém corrigir.
Ainda assim, folgo saber que a galinha-mor optou pelo silêncio, resguardando-se da vergonha que a contenda prometia. No entanto, pondera renegar a família, gesto assaz curioso para quem, como ela, sabe que o suposto agressor sabe aquilo que ela sabe que ele sabe.

Bons repenicos

terça-feira, março 20, 2007

Correio Registado


Escreve minha querida, escreve. Fosse eu tão bom a amar como tu a escrever.
Podes sempre derramar a espaços estorias do teu dia a dia, ornadas pela tua extraordinária capacidade de reflexão. Também podes aproveitar esse espaço para falares sobre coisas fúteis, ou outras, de que supões estar mal informada. Ligas-te à net e matas dois coelhos de uma cajadada... ou três: criação, informação e conhecimento... quase um tratado.
A tempos podes falar de mim, ou sobre mim. Com ou sem contemplação. Agradece a máquina, que perfilha novas páginas para consumir nas entranhas da mother board, entre bits e bytes de vocação lógica... será menino ou menina, homem ou mulher?(E Deus! Onde guarda a máquina Deus? Sim porque se somos feitos à Sua imagem deveria a percepção da máquina por nós criada reconhecer a simbiose e aconchegar no desktop um shortcut divino que nos levasse imediatamente a Ele, uma espécie de altar cibernético onde pudéssemos reclamar da sua distracção); agradeço eu, que me encontraria no alinhamento das tuas palavras escritas.
As palavras escritas são mais intensas, pausadas e pensadas, logo, reclamam mais atenção nas entrelinhas. A quantidade de coisas que se podem dizer nas entrelinhas de uma opinião escrita. Se a opinião for criativa e a estética sincopada está-se próximo da poesia. A poesia é quase isso, sistematizar as emoções por forma que o muito que lá não está é induzido pelo suficiente que lá está. Mas a narrativa pode fluir sem preocupações poéticas, ganhando assim a humanidade de quem as escreve e de quem as lê. Sem arte, só pelo prazer de reter e ser retido num momento de escrita, num momento de leitura.
Nunca é compremetedora esta máquina onde depositas horizontalmente as tuas vivências e preocupações. Vendo bem não passa de um depositário pseudo-inteligente que atenta erros de escrita. Fosse o Woord um pidesco manancial programático de virtudes e teríamos ondinhas a vermelho por todo o texto. Mas não é! Podemos sempre despejar verborreia nestas plataformas cor de leite cego, como no romance, e achar que ninguém nos lê. É um descanso.
(Ass. O homem da pizza)

PS: Quem não conhecer o meu homem da pizza recomendo a leitura, pela ordem indicada, das seguintes bicadas:

O meu homem da pizza
Mexericos
Ainda o meu homem da pizza

segunda-feira, março 19, 2007

Homenagem ao Pai

Com a devida concordância da Rosalinda republicamos um poema da sua autoria como forma de homenagear todos os pais.

ANIVERSÁRIO

Hoje o meu pai fez 75 anos. Telefonei-lhe. O resto correu...
Tenho medo de perder a noção do tempo, de não ver a diferença...
Hoje marquei finalmente consulta num psiquiatra
Tenho 38 anos. Não conheço a minha máscara
Já tomei decisões difíceis, realizei, filosofei
Chorei
Como todas as histórias, esta também tem um começo.
Sempre tive o vício de procurar justificação para as coisas
Coisas simples como ir ao psiquiatra, sim,
Ou como ir à Fnac e sair de lá com ‘Mais Platão menos prozac’
Num daqueles sacos tipo ‘eu consumo cultura’...
De repente lembro-me que me pagam há 15 anos
Para ensinar filosofia
E não pagam o suficiente para livros
que servem apenas para me lembrar que essa terapia já a faço há anos.
Vou ao psiquiatra
É a minha primeira vez!
De repente lembro-me da justificação...
‘então diga lá, porque vem cá’, ou outra coisa qualquer
e percebo que é por não o saber que lá estou
assalta-me então o terror do discurso
tenho de ser coerente, cuidadosa, senão ele pensa que sou completamente louca
e receita-me ‘incapacidade total para gerir a minha vida’
ou acha-me suficientemente equilibrada e não me leva a sério.
Entre uma coisa e outra , uma profusão de medos e memórias
38 anos, dum extremo ao outro
da incerteza, à natureza morta no canto da lareira
do inesperado, à triste certeza de que nem sempre o que é esperado acontece
entre a fé e a força das apostas difíceis
e o fascínio dos abismos fáceis.
Quer que lhe faça um relatório? De quanto tempo é que disponho?
Falo-lhe desde quando?
da primeira vez que tive medo, da iniciação sexual, da estudante temerária
activista sindical, grevista (deixei-me disso),
profissional do ensino português há quinze anos.
Aviso-o já que não tenho dinheiro para muitas consultas
Se quiser salto já para o ensino e você diagnostica ‘esgotamento’
Sabe, mas eu gostava de ser levada mais a sério.
Fiz dois filhos. Um sobreviveu.
Fiz uma casa, várias... foram-se.
Casamento, divórcio, a perda, pouco dinheiro...
Já deve ter percebido porque é que eu marquei a consulta.
Porque o meu pai fez hoje 75 anos e está mais vivo do que eu.

Rosalinda

quinta-feira, março 15, 2007

O recado

Levava o passo estugado. Ia fazer compras à mãe e matraqueava interiormente o rol de aquisições – 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar, 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar. Se fosse a correr, talvez conseguisse tempo para dar uma perninha no adro da igreja – 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar, 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar.
Chegou ofegante mas de pouco lhe serviu o esforço. Ninguém à vista lá no sítio costumeiro, onde, entre golos, fintas e caneladas, se prestava a contrariar as recomendações maternas. Tinha 10 minutos de divertimento e nada para fazer deles.
Estampou-se-lhe o sorriso na face ao ver surgir, não os companheiros do adro, mas, vinda em idêntico recado, a avaliar pela caderneta de fiado, a Zeca do Lívio, toda de mansinho, numa eternidade de aproximação. O que fazer? Entrar ou não entrar no estabelecimento... se entrasse não se sentiria à vontade para falar com ela e o mais provável era ficarem por um cumprimento seco, como os 10 papo-secos encomendados – 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar; se não entrasse como iria justificar a sua inquieta presença ali no umbral da porta. Raios, que já lhe adivinhava a gozação – olha que a porta não cai - ou ainda pior, - às compras à mamã! - ou então, muito pior, a indiferença do costume. Estes pensamentos corriam-lhe vertiginosos e o embaraço crescia na proporção contrária à distância que o separava do inesperado encontro.
Zeca era moça despachada mas insensível aos atrevimentos dos rapazes, mesmo dos mais velhos. Já não era menina. A meninice tinha-lhe escapado no desconforto de um socalco de vinha em fim de Verão. Tarefeira ocasional, perdeu a curiosidade junto a cepa de videira anciã, vindima do fruto e do corpo. Não ficaram boas recordações dessa iniciação e, talvez por isso, a incomodassem os rapazes e os namoros.
Mas destas coisas não sabia o rapaz, que a julgava tão menina como as outras. Com ela sempre reprimiu fantasias ousadas e os próprios sonhos recusavam-se a colaborar com o desejo despontado.
Pressentiu-a. Levantou com dificuldade os olhos e esboçou um sorriso patético. Ela tomou consciência dele e, ligeira, subiu o degrau que antecedia a porta do estabelecimento. Hesitou. Virou-se devagar, olhou-o acintosa e disse:
– Tenho uma coisa para te contar. Espera-me no chafariz.
Nunca o tempo correu tão desacertado. A ânsia e o pânico apoderaram-se dele transformando aqueles breves minutos num desassossego aflitivo. Valeu-lhe a consolo da água ali à mão para acalmar o nervoso miudinho. Sentou-se no banco de pedra que existia nas traseiras do fontanário e serenou o que podia - 10 papo-secos uma broa e dois quilos de açúcar.
Ela chegou e contou:
– A minha prima de Lisboa pediu-me para te dizer que gosta de ti e que te desse um beijo por ela.
Ficaram silenciosos. Ela expectante. Ele especado.
– Não dizes nada- perguntou ela.
O rapaz remoeu silêncios - um beijo da prima! Eu não suporto a prima - pensou meio desiludido.
– Bem, toma lá um beijo que tenho de me ir embora.
Ele cedeu a face, triste e inconformado. Fosse por interior insatisfação, descontrolo emocional ou afoiteza irreflectida, não resistiu à aproximação dos lábios dela. Num gesto arrojado rodou ligeiramente a cara e beijou-a nos lábios. Afastou-se rapidamente e aguardou a estalada, não conhecesse ele a má vontade da rapariga para com estas liberdades.
Contra todas as suposições, Zeca arrumou traumas passados e, num arroubo de paixão reencontrada, agarrou os cabelos do rapaz e beijou-o longamente. Respirou, voltou a beijá-lo e afastou-se, sem olhar para trás.
O rapaz nunca tinha sido beijado. Tinha lido muito sobre este e outros assuntos complementares, mas desconhecia por completo o sabor e a textura de um beijo.
Demorou a digerir emoções e recuperou a placidez com dificuldade. Ainda incrédulo por tamanha dádiva, dirigiu-se mais calmo ao estabelecimento e pediu aquilo de que vinha a mando.
A mãe ainda hoje conta a história daquela vez em que o mandou comprar 10 papo-secos, uma broa e dois quilos de açúcar e ele apareceu com um saco enorme de açúcar e dois miseráveis papo-secos:
– Foi jogar à bola para o adro da igreja e baralhou tudo!

domingo, março 11, 2007

Flash urbano


Da nossa amiga Rosalinda recebemos este “flash urbano” a propósito do Dia Internacional da Mulher.

Anteontem foi o meu dia. Não fosse uma mensagem no telemóvel, do género “se te orgulhas de ser mulher (...) envia esta mensagem a outra mulher para que não se quebre a corrente”, e teria escapado incólume à humilhação de tal dia e de tal mensagem.
É por me orgulhar de ser mulher que não preciso de fazer passar a mensagem e muito menos de pular de contente perante o dia que assinala, na história e na histeria do consumo actual, a marca da nossa histórica inferioridade.
Enviou-me a mensagem uma amiga que hoje me confessou, ingenuamente feliz, que anteontem, logo pela manhã, os quatro filhos lhe apareceram à porta com flores e sorrisos de parabéns pelo dia da mulher.
Motivo de orgulho para a mãe, o enorme entusiasmo trazia também o auto-convite para virem todos jantar com a mamã, acompanhados das respectivas namoradas, uma delas com a irmã, e ainda de um amigo pendura cuja mãe vive na província. Logo esse dia feliz se transformou numa incursão extra ao supermercado e o resto da tarde a preparar o maravilhoso jantar de comemoração para dez pessoas. Foi um dia ocupadíssimo, tendo em conta que de manhã deu aulas e no resto do dia deu de comer - mas muito engraçado – terminou ela alisando a borda da saia em recato de gesto e de ânsia.
Resignação, pensei eu. Deve ser resignação o que a traz tão orgulhosa e tão ligeira em querer passar a mensagem.

Rosalinda

sexta-feira, março 09, 2007

Dia Internacional da Mulher

Passou mais um dia, igual a tantos outros, mas diferente, porque dedicado à mulher.
Em verdade, todos estes dias em que se evoca ou celebra qualquer coisa são maioritariamente ineficazes e roçam invariavelmente a hipocrisia. Relativamente ao Dia Internacional da Mulher, não duvido das boas intenções dos seus criadores ou das organizações que, aproveitando a data, alertam para os problemas directa ou indirectamente associados à referência que se comemora. O que me causa indiferença é a institucionalização generalizada de dias que celebram as mais disparatadas causas e os mais inusitados “objectos”, até por negação, como é o caso do Dia do Não Fumador e muitos outros de rebuscada inspiração. Nunca lhes descobri qualquer utilidade, a não ser um ligeiro reflexo da má consciência que nos toca a todos, por inércia ou comodismo, quando o assunto vem à baila.
As mulheres, todos sabemos, ainda são discriminadas, quer seja no acesso ao mundo do trabalho, a cargos, funções, à remuneração, etc. etc., e em determinadas países e culturas, privadas de direitos fundamentais, como o acesso à escola, a prática religiosa, o voto, o exercício da política, a auto-determinação.
Nunca são demais os esforços desenvolvidos para inverter essa tendência predominantemente masculina em subjugar a mulher e reduzir o seu estatuto social a mera procriadora. E, mesmo aí, alguns homens arvoram-se em detentores absolutos da ética e da moral para as limitar no exercício da livre escolha sobre si próprias. Disto se deu conta, em Portugal, na discussão que antecedeu a votação do referendo sobre a IVG. Vi muitos homens preocupados com a dignidade do feto, mas, por onde andam esses mesmos arautos da defesa da condição humana, quando as mulheres são manietadas, violadas, espancadas, apedrejadas, excisadas, traficadas, escravizadas etc. etc.?
Não quero fazer da mulher uma vítima nem do homem carrasco, mas não posso deixar de pensar que o poder sempre foi exclusivo dos homens e foram estes que, ao longo dos tempos, tentaram limitar por iniciativa, negligência ou temor o papel da mulher na sociedade.
Por todas as mulheres que lutaram e morreram na defesa dos seus legítimos direitos queiramos dedicar não um, mas 365 dias de merecida evocação. Para as que ainda lutam e que ainda sofrem de discriminação e de violência física e psíquica, todos os dias são dias da mulher. Façamos de cada um mais um passo na caminhada pela igualdade na diferença.

segunda-feira, março 05, 2007

Crónicas da Galinha Riça - O Delfim

Já estávamos tão habituadas às suas bicaditas que foi com grande tristeza e até com algum inconformismo que aceitámos a evidência. O berloqueiro-mor cá da nossa praça evadiu-se ou esvaiu-se, conforme queiramos.
Mas não nos surpreendeu. As estratégias pessoais dos aspirantes a uma carreira política têm destas coisas. Baseados no ciclo da reviravolta eleitoral, os carreiristas expõem-se, escondem-se, migram, imigram e emigram conforme conveniências partidárias e ambições pessoais. Usam frequentemente os meios de comunicação para relançar as suas carreiras, porém, quando queimados na contenda política ou apanhados com a boca na botija, fogem da televisão e dos jornais como o diabo foge da cruz, almejando o esquecimento que lhes trará a redenção futura. Destes, diz-se que fazem a travessia do deserto, como se tal ausência lhes purificasse os erros, ou, no último caso, lhes expiasse os pecados e lhes devolvesse virtudes que nunca tiveram. Coelho na toca não encontra chumbo.
À falta de televisões e jornais aqui no burgo, o nosso paladino aprendiz de feiticeiro, expôs-se publicamente nos berloques cá da terra, angariando reputação e protagonismo notórios. Ora como articulista, ora como comentador, alvitrava de sua justiça a torto e a direito e, atrevo-me a dizer, quase fazia doutrina, não estivesse do lado errado da barricada.
Nas alturas mais conturbadas da cena política canense tentou com o seu voluntarismo operacional atenuar a fogueira que ardia sem controlo e que queimava uns e outros, à esquerda, ao centro e à direita, mas, o combustível que a alimentava era oleoso e quanto mais água deitava na fervura mais a labareda se revelava descontrolada. Acabou enredado no emaranhado da política interna e chamuscado naquele fogaréu fratricída, pois, para mal dos seus pecados, a sua costela rosa era comprometedora e a malta não lhe perdoou a matiz.
Agora, talvez inspirado pela mestria dos mentores nacionais, este dinâmico e bem sucedido berloquista eclipsou-se. Parece ter optado pela estratégia da descrição e do distanciamento, quem sabe, já a pensar na sucessão política que a sua condição de delfim propicia.
Confrontado com a vulgarização a que se permitiu, perfeitamente contrária às regras mais básicas que a credibilidade política exige, optou por reter ímpetos entusiastas e rastos embaraçosos. Para evitar a fulanização a que a exposição berloqueira o sujeitava, afastou-se destas andanças, buscando no deserto o branqueamento do passado irrequieto e truculento, pouco promissor às aspirações políticas que anseia.
É uma pena, pois perdeu-se um bom berloqueiro e não vamos ganhar por certo um bom político.

Bons repenicos